A Paraíba tem um importante ciclo de sua história no cinema realizado em Super-8. A pequena película criada para uso caseiro representava uma possibilidade única de experimentação aos realizadores paraibanos das décadas de 1970 e 1980, em um contexto social de repressão ideológica e de controle econômico do audiovisual. Os modos de produção eram caros e o acesso a equipamentos, escasso. Exatos 50 anos depois, a velha bitola de 8mm volta a ser utilizada em série no estado e vem garantindo prêmios em festivais nacionais aos paraibanos. As atuais gerações de realizadores têm transformado a textura granulada e o formato quadrado da tela marcada pelas cores saturadas e imperfeições ópticas em novas proposições estéticas.
O principal responsável por estruturar essa retomada e valorização da memória da produção superoitista no estado é o projeto 8 por 8, que reúne oito cineastas paraibanos produzindo oito curtas-metragens captados no antigo suporte. Um interesse que acompanha um movimento crescente em todo o país. “Além dessa coisa quase fetichista de voltar a trabalhar com a película, existe o interesse de retomar processos que passam por um cinema menos industrial. Quando a gente pensa em fazer um filme, isso inclui envolver muitas pessoas na equipe, vários departamentos, como som, direção de arte e etc. Produzir em Super-8 nos conecta com um fazer mais intimista, mais próximo daquilo que estamos filmando. É uma outra forma de pensar e realizar audiovisual”, afirma Gian Orsini, cineasta e coordenador do projeto 8 por 8 com a também cineasta Mariah Benaglia.
Mesmo em filmes atuais produzidos em mídias digitais, não é incomum a utilização pontual de gravações em 8mm. Geralmente, elas são contextualizadas na narrativa por uma estética de registros domésticos realizados por amadores, ou para trazer imagens memorialistas que parecem mantidas em cápsulas do tempo. “Existe uma diversidade muito grande nos filmes que foram feitos para o projeto. Tem filmes mais experimentais, ficções e documentários. Ele acaba explorando as várias possibilidades do Super-8, para além dessa ideia do resgate memorialista da imagem. Existe esse encantamento com a textura, com o grão, que a imagem digital não traduz mais”, afirma Orsini, que dirige La Caramella (2023), um documentário de nove minutos, falado em italiano, em que o personagem Giulio, de 86 anos, rememora episódios de sua infância quando sua família se refugiou no pequeno vilarejo de Collevecchio, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.
“Como ele tem essa ideia de ser uma narração de um evento acontecido há tantos anos, trazer o Super-8 é brincar com a memória e as imagens que remontam ao passado. O Super-8 casa muito bem com essa ideia”, justifica Orsini. Se a ideia casa muito bem com a película, outras características se apresentam como desafios aos realizadores formados na era digital. “É preciso pensar por uma outra lógica. Não é possível filmar vários takes da mesma cena. Temos uma limitação de cartucho e de tempo, por isso a gente precisa planejar cuidadosamente tudo aquilo que vamos filmar. Existe também o lance de você não poder ver a cena. Você filma e torce para dar tudo certo. A gente só vê a imagem muito tempo depois, após a revelação, gerando uma ansiedade grande”, compara Gian Orsini.
Velha Guarda
Um dos realizadores que integra o projeto é Torquato Joel. Ele fez parte da primeira fase do Super-8 na Paraíba e é autor, em conjunto com Bertrand Lira, de Imagens do Declínio – Beba Coca Babe Cola (1981), e, neste ano, voltou a usar a bitola para produzir Anomalia, uma ficção de cinco minutos. Uma das dificuldades adicionais que Torquato Joel e todos os demais cineastas tiveram ao retomar o uso do Super-8 meio século depois, foi a necessidade de se adaptarem ao uso de uma única câmera. É que os equipamentos portáteis não são mais fabricados pela indústria, sendo necessário empreender um processo de garimpo e pesquisa por essas filmadoras, hoje nas mãos apenas da legião de fãs nostálgicos. Isso forçou os envolvidos no projeto a criarem um esquema de cooperação conjunta.
“Os filmes não foram rodados ao mesmo tempo. Cada um ia filmando, e várias pessoas integrantes do projeto acabaram trabalhando em outras funções dos outros filmes. Diego Benevides, por exemplo, dirigiu Conserva, mas ele é montador do La Caramella. O Ian Abé dirigiu Brujeria e foi assistente de direção de Pai e filho, de Rodolpho de Barros, que por sua vez fotografou Brujeria. Então, também tem essa experiência coletiva de troca e aprendizado”, ilustra Orsini. Ele esteve com Mariah Benaglia, Diego Benevides e Kio Lima (diretor de fotografia de La Caramella e Mar-pedra-rio) no Festival SuperOff, um dos mais importantes para as produções Super-8 do país, e que foi realizado na última semana de julho, no Centro Cultural São Paulo. Eles voltaram de lá com o prêmio especial do júri para Pai e filho.
Diferentes produções do estado já estão selecionadas para outros importantes festivais. Cósmica, de Ana Bárbara Ramos, recebeu menção honrosa 21ª Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis e vai para o 33º Kinoforum – Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, enquanto Conserva está selecionado para a 22ª Goiânia Mostra Curtas, e La Caramella para o 14º Festival de Cinema de Triunfo, em Pernambuco.
Depois de terem sido substituídos em seu uso caseiro pelo vídeocassete e pelas câmeras em VHS, os entusiastas superoitistas prometem continuar produzindo cinema nesse formato retrô. “Agora, vamos tentar todo tipo de edital de financiamento para realizar outras edições do projeto, e convidar novas pessoas de diferentes contextos, em busca de diversidade para continuar realizando Super-8 na Paraíba”, conclui Gian Orsini.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 5 de agosto de 2023.