Lúcio Vilar - Especial para A União
De Brasília/DF. Eryk Rocha – filho do saudoso cineasta Glauber Rocha – exibe hoje, às 20h30, na abertura oficial do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, seu novo longa-metragem intitulado “Cinema Novo”. Sétima produção do jovem diretor (38 anos), o filme foi premiado no Festival de Cannes, este ano, com o L’Oeil D’Or (ou Olho de Ouro), desbancando 16 outras importantes produções que estavam no páreo. Na entrevista que segue, ele se reporta às motivações para realizar o documentário, de tonalidade poética, do resgate histórico da geração sessentista, das possíveis ‘pontes’ que a obra poderá estabelecer com as novas gerações, projetos novos em curso e da situação do Brasil que vive, na sua avaliação, um “tempo de ruínas”, num “transe político com contornos trágicos”. Confiram principais trechos da entrevista.
Você tem afirmado que esse filme representa um mergulho nas “raízes cinematográficas” do País. O que, do ponto de vista mais íntimo do cineasta, foi desvelado, e o mobilizou nessa realização?
Nem sempre é límpido e racional o que nos move em direção a realizar um filme. Há sempre uma explicação parcial, mas as forças que te movem tem algo no campo do mistério. Em realidade não é você que faz o filme, é o filme que te faz. Os filmes nascem das vísceras e da profunda necessidade de dizer algo que não pode deixar de ser dito. Acredito que Cinema Novo nasce do meu desejo de investigar a história cinematográfica, cultural e política do meu País em cruzamento com minhas raízes afetivas. Entender melhor e tentar alumbrar a época em que vivo. Penso que o legado do movimento é muito rico, fértil e inspirador para se pensar o Brasil hoje, e pensar o cinema Cinema Novo como potência, estado de espirito, e tradução poética e política de uma realidade em ebulição como é a brasileira.
- Há ainda lacunas a serem resolvidas em torno do tema “cinema novo”?
Esse filme é fruto de um encontro entre gerações. Esse não é um filme sobre o Cinema Novo nem que ambiciona explicá-lo, mas através e com ele, que eclode a partir de um caldeirão de vozes, afetos e poéticas. Fazer esse filme me provocou o desafio de superar o aspecto anedótico-historicista-didático e dialogar com o movimento no presente. O desejo do filme foi olhar o cinema novo como um estado de espírito compulsivo de criação que revela o embate do artista/cineasta com seu tempo. Como disse Glauber, um dos líderes do movimento: “Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo.”
- Existiria, na sua ótica, um desconhecimento generalizado sobre o que ocorreu nos anos 1960 por parte das novas gerações, no Brasil?
Realizar esse filme é lembrar de uma geração que vivenciou em carne própria a ditadura militar, e viu o sonho coletivo de uma revolução social e cultural ser interrompido. Uma das matrizes que o filme quer revelar é a interrupção que o movimento sofreu a partir do golpe civil-militar de 1964, e principalmente o trágico desdobramento do Ato 5 em 1968 que interditou a realidade brasileira e instaurou no País um regime autoritário de terror. Nesse momento, estamos vivenciando no Brasil uma ruptura do processo democrático, um golpe parlamentar-jurídico-midiático e novamente, uma interrupção. Na América Latina conhecemos bem esses ciclos de interrupções e recomeços. Acredito que esses problemas permanecem vivos na estrutura da sociedade escravocrata brasileira que ainda não conseguiu superar os entraves atávicos do subdesenvolvimento e as marcas do passado colonialista. Existe um embrião de democracia, mas ainda almejamos desenvolver uma democracia social mais plena, mais real e consistente. Por isso a necessidade de que arte e política estejam em diálogo, elevando a cultura a uma dimensão de construção política do País e do continente latino-americano.
Nessa linha de raciocínio, seu filme se coloca como uma tentativa de estabelecer ‘pontes’ com segmentos mais jovens?
Sem dúvida. Trazer a memória como construção de futuro. Acredito que uma das forças originárias do movimento do Cinema Novo foi realizar uma potente simbiose entre política e estética, entre forma e conteúdo, uma nova gramática, tudo eclode, irrompe na tela! Nessa perspectiva me impressionou perceber como vários desses filmes seguem ecoando e dialogando visceralmente com o Brasil contemporâneo.
- Suas realizações circunscrevem-se mais ao campo do documentário. A narrativa ficcional ainda não lhe seduziu suficientemente para enveredar por essa seara?
Não diferencio nem separo o cinema entre ficção e documentário. Mas procuro sentir, perceber e descobrir a poética mais instigante para cada projeto. As poucas experiências que tive com dramaturgias estão impregnadas do real, de procedimentos considerados “documentais”. ( um exemplo é meu filme “Transeunte”). E vice-versa, nos documentários que realizo busco constantemente o “imaginário” das questões, conflitos e personagens abordados. Me fascina a construção poética, a aventura e o abismo de cada obra. Recentemente fui para a Amazônia filmar um documentário sobre uma escritora, ex- guerrilheira que vive na beira de uma estrada, e o filme virou uma ficção. As entrevistas com ela não rendiam muito, não fluíam, e começaram a surgir cenas e auto-encenações com essa mulher e tudo foi se transformando. O filme se chama “EDNA”, e em breve iniciamos a montagem. Em março filmo “Breves miragens de Sol”, em princípio, um filme de ficção nos moldes mais clássicos, com atores profissionais, e uma dramaturgia que dialoga com alguns aspectos do cinema de gênero. Mas nunca se sabe o que acontecerá...
- Parafraseando seu pai (Glauber Rocha), como você percebe o Brasil ‘em transe’ na atual conjuntura política?
Hoje, o debate politico voltou a ocupar um lugar crucial no Brasil. Estamos vivendo um verdadeiro transe político com contornos trágicos. Essa alta tensão do País inevitavelmente afeta o dia a dia, o corpo, e deixa a sensibilidade á flor da pele. O cinema tem o poder de criar memória, e ser testemunha desse momento. Esses estados do País podem inspirar e despertar novas correntes do nosso cinema, e acho que a tendência é que isso se intensifique, se aprofunde, já que os desdobramentos e acirramentos das lutas políticas e sociais são imprevisíveis. Cada época tem suas formas de expressão. E hoje o desafio é saber como o cinema brasileiro vai refletir e atuar nesse processo novo do País. Como vai traduzir o País na tela. Isso me inquieta como realizador, me instiga e me provoca filmar esse “tempo histórico” tão estranho que habitamos, tempo de ruínas.