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Com a marca registrada da diversidade nos gibis

publicado: 23/02/2024 08h50, última modificação: 23/02/2024 08h50
No dia em que começam as inscrições para o Artists’ Alley do Imagineland, conheça um pouco mais da obra da quadrinista convidada Germana Viana
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“Eu nasci em Recife, fui criada em São Paulo, mas com grande influência nordestina”, conta Germana, que mantém contato com artistas como Roberta Cirne (PE), Thaïs Gualberto (PB) e Milena Azevedo (RN) - Foto: Acervo Pessoal
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Algumas obras da pernambucana, como o terror de ‘Patrícia’ - Imagem: Germana Viana/Divulgação
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A premiada série coletiva ‘Gibi de Menininha’ - Imagem: Germana Viana/Divulgação
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O ‘sci-fi’ insano de ‘Lizzie Bordello e as Piratas do Espaço’ - Imagem: Germana Viana/Divulgação
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Imagens: Germana Viana/Divulgação
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por Joel Cavalcanti*

Quando os corredores do Artists’ Alley do Imagineland estiverem abertos entre os dias 26 e 28 de julho, no Centro de Convenções de João Pessoa, um processo de transformação poderá ser observado na feição dos quadrinistas convidados para o evento. Um maior número de mulheres e de pessoas LGBTQIA+ será visível e, entre elas, estará a pernambucana radicada em São Paulo, Germana Viana. A autora de Lizzie Bordello e as Piratas do Espaço vem para João Pessoa com o prestígio de já ter vencido o troféu HQMix com As Empoderadas e Gibi de Menininha. Ela vem também com um histórico profissional dedicado à luta pela diversidade em todas as frentes da Nona Arte.

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Imagens: Germana Viana/Divulgação

A propósito, hoje tem início as inscrições para o Artists’ Alley do Imagineland. A segunda edição do evento vai ampliar o número de mesas disponíveis e serão 80 stands de quadrinistas este ano. Os interessados podem realizar a inscrição através do site oficial da convenção de cultura pop (imagineland.com.br).

Depois de uma década dedicada à indústria dos quadrinhos, trabalhando como designer gráfico e agenciamento de artistas brasileiros no mercado estadunidense, Viana passou muitos anos apresentando trabalhos autorais e os vendo ser rejeitados no mercado mainstream. Hoje, seu nome é obrigatório em qualquer convenção relevante de HQs. “Tenho bastante tempo produzindo, tenho uma quantidade muito grande de material, com trabalhos coletivos, trabalhos solo e trabalho em vários gêneros. Então, tudo isso garante que tenha, não obrigatoriedade, mas um certo holofote, ainda que pequeno, comparado com o dos homens, para cima do meu nome”.

Ao se referir a “vários gêneros”, não há qualquer exagero cartunesco nisso. A artista usa muito do humor e não consegue falar nada sério de forma muito grave. Ela produz em Lizzie Bordello um sci-fi insano em que o teor científico é bastante duvidoso, tal qual Doctor Who ou Star Trek. Já em As Empoderadas, ela conta a história de três heroínas em que o humor está no fato de serem mulheres comuns que ganham superpoderes após um estranho fenômeno solar e resolvem se tornar justiceiras. Já Gibi de Menininha é definido pela autora como “historietas de terror e putaria”. O conteúdo erótico também é o que move a série de gibis Ménage. Um volume grande e premiado de produções que esteve por muitos anos represado pela indústria que ainda privilegia o homem.

“Eu via que tinha artistas que eram bem inferiores ao meu trabalho, mas como eram homens, eles estavam lá produzindo. E é uma grande desvantagem. Eu preferia que nenhuma mulher tivesse que passar por uma preparação tão longa. Por um lado, eu tenho uma visão de produção e de mercado que pouquíssimos artistas têm. Entendo cada parte do processo porque estive lá, e eu sei como ler um contrato. Talvez tivesse que ir aprendendo durante o processo, mas eu adoraria que nenhuma menina que viesse depois de mim tivesse que demorar tanto tempo e tivesse que lutar tanto com a autoestima para poder tomar coragem”, defende a quadrinista. Apesar de essa realidade ter se modificado para Viana através do alcance de seu trabalho, ela permanece produzindo tanto para o mercado profissional quanto para o independente.

Na maioria dos trabalhos que assume, a artista costuma contribuir em todo o processo de criação de uma HQ, em que ela atua escrevendo, desenhando, fazendo a arte-final, as cores e o letramento. Para isso, Germana Viana conta com variadas influências literárias, musicais e cinematográficas. Entre os maiores para ela estão os quadrinistas estadunidenses David Mazzucchelli e Trina Robbins, os britânicos Neil Gaiman e Warren Ellis, o brasileiro Angeli e os Irmãos Hernandez, de Love and Rockets. A revista em quadrinhos que narra a experiência da comunidade latina nos Estados Unidos, discutindo questões que envolvem a imigração e a identidade cultural, está relacionada com sua própria experiência pessoal.

“Sempre tenho que ter noção de que eu tô aqui [em São Paulo] há muito tempo, por isso que um trabalho meu que eu ainda preciso retomar, que é O Verão do Papa-Angu, que é uma menina visitando uma cidadezinha nordestina e se envolvendo com os cangaceiros. Boto ela a partir da visão de alguém que nasceu lá, mas foi criada no Rio de Janeiro, saca? Porque eu sempre vou estar nesses dois espaços. Eu nasci em Recife, fui criada em São Paulo, mas com grande influência nordestina”, conta ela, que mantém diálogos diretos com artistas daqui, como Roberta Cirne, do Recife; Thaïs Gualberto, de João Pessoa; e Milena Azevedo, de Natal.

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Algumas obras da pernambucana, como o terror de ‘Patrícia’ - Imagem: Germana Viana/Divulgação

Germana Viana traz com naturalidade para suas HQs personagens e contextos que tratam a vida das pessoas em dilemas que vão além de suas identidades de gênero ou orientações sexuais. Uma decisão que ainda conta com desafetos. “A cultura nerd é uma comunidade que já foi muito humilhada. Ela não aprendeu com isso e uma boa parte dela é formada por um público que só queria pisar no outro. É aquela coisa do Paulo Freire, se você não tem educação adequada, o oprimido vai querer só estar no lugar do opressor. Mas eu, de fato, não acho que ele é majoritário, só acho que esse público misógino, homofóbico e racista é mais barulhento. A real é que o mundo tá diverso e esses caras estão desesperados. São dinossauros que estão morrendo, mas dinossauros quando morrem eles fazem muito estrago”.

O fio condutor que alinha todos os trabalhos de Germana Viana é mesmo o da diversidade. Mesmo em gêneros considerados malditos, como o terror e o erótico, ou em adaptações de clássicos da literatura para os quadrinhos, criados para o público infantojuvenil, há um nítido cuidado por parte da autora em não reproduzir estereótipos quando inclui em seus enredos personagens negros, asiáticos ou pessoas trans, por exemplo. Um caminho editorial que amplia ainda mais as capacidades narrativas das histórias em quadrinhos.

“A gente tem um privilégio muito grande de trabalhar com expressão artística, que é a gente nunca estar pronto. Isso é assustador, mas ao mesmo tempo é muito bom, porque a gente vai estar sempre crescendo, a gente não fica estagnado. O artista que acha que está pronto ele estagnou, acabou. Se você nunca vai estar pronto, mete a cara e vai, porque enquanto você está cheio de segurança, tem aquele moleque medíocre que está postando na internet, vendendo o gibi dele, porque ele tem a autoconfiança mais bem trabalhada que a sua, porque foi treinado para ser assim, enquanto a gente foi adestrado para não ter segurança, inclusive, na porrada. Então vamos meter a cara e fazer mesmo”, incentiva Germana Viana.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 23 de fevereiro de 2024.