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Lançamento

Com o peso do terror nas costas

publicado: 17/02/2023 00h00, última modificação: 23/02/2023 10h10
Chega ao Brasil ‘Infiel’, história em quadrinhos que aborda temas como a intolerância e o ódio aos imigrantes
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Jovem mulçumana que vive em Nova York, nos EUA, é atormentada por criaturas quando passa por um momento de negação da própria fé, diante da paranoia, xenofobia e misoginia. Imagem: Pipoca e Nanquim/Divulgação - Foto: Pipoca e Nanquim/Divulgação

tags: infiel , pichetshote , campbell , aimée de jongh , a sala de espera da europa , audaci junior

por Audaci Junior*

Deitada, uma mulçumana que está radicada na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, relembra do cheiro de carne podre quando, certa vez, deixou o produto fora da refrigeração apropriada após chegar de uma viagem. Na virada da página, o leitor vai se deparar com a cena apavorante de uma figura monstruosa, disforme e grotesca por cima da jovem de origem paquistanesa, que – apesar de ter uma aparência etérea – está colocando todo seu “peso” na protagonista, evocando o clássico da literatura O Horla, um dos mais importantes contos fantásticos escrito pelo francês Guy de Maupassant (1850-1893).

Todo esse preparo é para uma história de terror, cujo viés é da boa e velha residência mal-assombrada, mas com uma crítica sócio-política bastante acentuada, algo que podemos observar em determinados filmes do gênero, a exemplo de Corra! (2017), do Jordan Peele, O Que Ficou Para Trás (2020), dirigido por Remi Weekes, ou Nanny (2022), fábula conduzida por Nikyatu Jusu. Veio para somar a história em quadrinhos Infiel (Pipoca e Nanquim, 180 páginas, R$ 89,90), escrita por Pornsak Pichetshote, ilustrada por Aaron Campbell, com cores de José Villarrubia, este último acumula também a função de editor original da obra, lançada nos Estados Unidos em 2018, pela Image Comics.

Em ‘Infiel’, a protagonista fica encurralada entre manter o apoio emocional para a sua família e desvendar o mistério de assombraçõesno seu prédio. Imagem: Pipoca e Nanquim/Divulgação

Na trama, a jovem muçulmana é Aisha, que vive um momento de negação da própria fé perante vários acontecimentos ao seu redor, desde ela ter se mudado com o marido e a pequena enteada para o prédio onde mora sua sogra. Além de colher os olhares e atitudes hostis dos moradores, o próprio local carrega a chaga visível nas suas paredes e estrutura por ter sido explodido em um suposto atentado terrorista, ato atribuído a um vizinho árabe.

Porém, as feridas são bem mais profundas, quando ela começa a presenciar seres monstruosos saindo de paredes, saindo das sombras dos corredores ou simplesmente invadindo seu espaço porta adentro, sempre ao som de insultos em vez das tradicionais correntes se arrastando pelo assoalho.

Caberá a Aisha e à sua melhor amiga, Medina, descobrirem como trazer a situação de volta à normalidade, frente à desconfiança, paranoia, recismo, xenofobia e misoginia espalhada como se fosse um câncer.

O roteirista Pornsak Pichetshote é um tailandês-americano que foi por muitos anos editor do finado selo adulto da DC Comics, o Vertigo, publicando séries como Sweet Tooth, do badalado canadense Jeff Lemire (que assina o posfácio). Infiel é sua primeira grande obra, que não deixa de cutucar o pior terror fora da alçada do sobrenatural: a realidade.

Um exemplo pode ser encontrado na figura da sogra, uma “nova-iorquina comum”, mas que não se despe de seus preconceitos, evidenciados no comportamento passivo-agressivo ou até mesmo em ações “sutis” no que é retratado através do dia a dia do novo convívio com a nora mulçumana. Desde questionamentos culinários nos quais consistem nos preparos de pratos com ingredientes que não condizem com a sua cultura ou religiosidade, até quando a enteada é pega experimentando o hijabe da madrasta, sendo censurada pela avó.

Aisha, encurralada, procura oferecer o apoio emocional para sua família não explodir como o prédio onde atualmente reside, cheio de assombrações. Tudo isso emoldurado pelo clima de tensão e horror proporcionado pela bela arte de Aaron Campbell, com atmosfera angustiante nos matizes orquestrados com habilidade pelo veterano Villarrubia.

Em suma, Infiel cumpre o papel de entregar uma genuína história de terror, como também provocar uma reflexão com uma base na metástase do racismo, preconceito e ódio, que nunca será curado, mas que pode pelo menos ter uma remissão.

Jongh relatou o cotidiano dos expatriados no local. Imagem: Conrad/Divulgação

Reportagem em quadrinhos foca a vida dos refugiados na ilha grega de Lesbos


Deixando de lado o quesito “sobrenatural”, outro lançamento recente que envolveu a questão dos refugiados é a HQ A Sala de Espera da Europa: Uma história de refugiados (Editora Conrad, 32 páginas, R$ 14,90), da holandesa Aimée de Jongh.

Em outubro de 2017, a quadrinista viajou até o campo de refugiados na ilha grega de Lesbos para fazer uma reportagem em quadrinhos sobre as condições apresentadas no local. Um importante detalhe: câmeras não eram permitidas. Por isso, os relatos apresentados através do lápis e da prosa da autora nos seus sete dias de visita acabam sendo um documento único sobre o ambiente e as condições dos refugiados.

Pela primeira vez, não só as pessoas que esperam entrar na Europa em busca de uma vida melhor, mas suas moradas, seus lugares de descanso e de refeições, foram documentadas pela perspectiva de Aimée de Jongh.

A autora também assina outra grande obra que foi lançada no ano passado por aqui: Dias de Areia (Editora Nemo, 288 páginas), sobre a dramática situação dos agricultores do Dust Bowl após a Grande Depressão, uma região foi atingida pela seca e por terríveis tempestades de areia que lançaram seus habitantes na miséria, forçando muitos deles a migrar para a Califórnia. Uma situação que rendeu o livro As Vinhas da Ira, do escritor norte-americano John Steinbeck, publicado em 1939 (e que rendeu um filme homônimo dirigido por John Ford).

Como um meio de democratizar a leitura de quadrinhos, a Conrad publica A Sala de Espera da Europa: Uma história de refugiados sob o selo ‘HQ para Todos’, iniciativa na qual a edição inédita tem um preço acessível, mantendo uma qualidade editorial. O outro lançamento é o nacional Mayara e Annabelle e a Carreta Furacão, de Pablo Casado e Talles Rodrigues.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de fevereiro de 2023.