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Pelo cinema acessível

Conquista de ‘Coda - No ritmo do coração’, grande vencedor do Oscar 2022, fomenta a reflexão sobre a acessibilidade no cinema

publicado: 29/03/2022 08h33, última modificação: 29/03/2022 08h33
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Foto: Apple Studios/Divulgação

por Joel Cavalcanti*

Excluído o ruidoso momento em que o ator Will Smith dá um tapa no comediante Chris Rock, a premiação do Oscar deste ano vai ficar lembrada pela vitória de melhor filme para Coda - No ritmo do coração e pela consagração do ator Troy Kotsur como o primeiro homem surdo a levar uma estatueta de atuação pela Academia. Na produção da Apple Studios, ele e a atriz Marlee Matlin interpretam os pais da adolescente Ruby, única ouvinte da família, que tem o sonho de se tornar cantora. Da emoção em ver todas as estrelas de Hollywood de pé aplaudindo com o característico balanço de mãos o sucesso do filme até a inclusão da comunidade surda nas atividades culturais existe um longo caminho, no qual o Brasil não tem demonstrado interesse em mudar.

“Esse é um marco muito representativo e isso está gerando discussões. Essa repercussão faz com que se provoque o pensamento que é possível ter pessoas surdas no âmbito cinematográfico retratando a comunidade e fazendo filmes de acesso”, considera o cineasta paraibano Danilo Guimarães. Ele dirigiu em Campina Grande o curta de terror Sentidos, sem qualquer som e com elenco formado por estudantes surdos.

Danilo cresceu ao lado de um primo surdo e aprendeu a se comunicar com ele antes de desenvolver a fala. Como sempre foi cinéfilo, eles assistiam juntos aos maiores clássicos do cinema, mas incomodava Danilo que ambos tivessem experiências tão distantes com as obras audiovisuais. “Por exemplo, em Tubarão você sabe que o perigo está se aproximando dos banhistas por causa da trilha sonora. Isso causa uma sensação de inquietude e de suspense, mas para os surdos são apenas pessoas tomando banho no mar”, explica o profissional. Para causar uma impressão correlata da elevação gradual da tensão e da sugestão simbólica do risco de violência, o diretor desenvolveu uma linguagem própria na produção.

“A partir do momento em que o filme vai chegando ao ponto dramático, as cores na tela vão perdendo a sua intensidade, até chegar ao ápice, que seria o preto e branco bem contrastado, característico do filme noir”, detalha o realizador. A estratégia deu certo, segundo Danilo, e durante as sessões do curta os surdos reagiam “sonorando” a tensão manipulada em seu eixo visual, exatamente como ocorre entre os ouvintes nas salas de cinema no mundo todo. Hoje, ele pretende permanecer explorando suas pesquisas nesse campo de criação e já tem pronto o roteiro de continuação de Sentidos.

Ser surdo não retira das pessoas os mesmos sonhos e curiosidade com os desafios da atuação. “Eu via outras pessoas vendo filmes, ansiosas. Eu as via fazendo teatro e também queria fazer, mas não sabia como era. Foi uma experiência legal, eu vi como as pessoas se sentiam e me senti dentro do personagem. Consegui, fluentemente, fazer essa aderência do personagem com a minha vida”, conta Ítalo Urbano, que é surdo, sobre sua primeira experiência como ator, em entrevista à produção do curta.

Segundo o censo demográfico de 2010, existiam naquele ano cerca de 55,4 mil pessoas surdas ou com deficiência auditiva na Região Metropolitana de João Pessoa. E elas vão encontrar barreiras para assistir Coda - No ritmo do coração ou quaisquer outros filmes na rede de cinemas local. A situação poderia ser diferente se uma instrução normativa da Agência Nacional do Cinema (Ancine) instituída em junho de 2019 tivesse sido seguida. A medida previa a obrigação de que, até janeiro de 2020, 100% das salas de cinema dos maiores exibidores do país possuíssem equipamentos de acessibilidade visual e auditiva, mas a sua entrada em vigor tem sido repetidamente adiada. A falta de debate público sobre o tema tem servido de aliada para o desinteresse político e a pressão contrária por parte da indústria.

“As pessoas sequer sabem que essas ferramentas de acessibilidade deveriam ter sido implementadas”, aponta Flávia Mayer, doutora em Linguística pela PUC-MG e vice-coordenadora do Observatório da Linguagem e Inclusão (UFMG e UFPB). O estatuto da Ancine prevê uma série de recursos de acessibilidade como a subtitulação por meio de legenda oculta, a janela com intérprete da língua brasileira de sinais (Libras) e a audiodescrição. “O surdo tem a Libras como primeira língua e ele, não necessariamente é bilíngue. Muitas vezes ele só sabe Libras, então, a legenda acessível só não serve”, destaca a especialista. Ela explica que os filmes já deveriam chegar com as ferramentas de acessibilidade embutidas e o parque exibidor deveria ter os equipamentos para fazer essa implementação.

Durante o discurso mais emocionante da cerimônia do Oscar, realizado em línguas de sinais, Troy Kotsur disse “Eu cheguei aqui”. E para que mais pessoas estejam em espaços de interação social com acesso a conhecimento, desenvolvimento pessoal, educação e cultura é preciso que se pare de normalizar a exclusão. O prêmio de melhor ator coadjuvante no Oscar pode ajudar a reforçar o debate público. “A gente parte de uma lógica de visibilidade para a causa se você tem pessoas com deficiência onde elas devem estar, em qualquer lugar. E nós estamos acostumados a ver pessoas com deficiência só falando sobre suas próprias deficiências. Se elas estão exercendo outros papéis, sendo atrizes, atores, ou qualquer outro lugar na sociedade, isso mostra o quanto elas são capazes”, conclui Flávia Mayer.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 29 de março de 2022