por Gi Ismael*
Engajamento, interação, conteúdo. Há poucas décadas, estas palavras estariam intrinsecamente conectadas a suas definições literais do dicionário: “engajamento” enquanto participação, muitas vezes política; “interação” como influência recíproca; “conteúdo” enquanto o teor de algo. Nenhuma dessas palavras perdeu o sentido etimológico, mas estes foram atropelados por definições que abrangem, especialmente, o mundo da comunicação na Internet.
Já se passaram quase 70 anos desde que a rede de televisão norte-americana CBN transmitiu pela primeira vez o programa ‘Winky Dink’, uma inventiva produção voltada para o público infantil considerada pioneira no quesito da interatividade. Funcionava assim: com a eletricidade estática produzida pelos antigos aparelhos de TV, os espectadores eram orientados a fixar folhas de plástico na tela e, com canetinhas, completavam desenhos para ajudar Winky a enfrentar desafios. Hoje, protagonistas de seus próprios canais na Internet, os apresentadores de transmissões ao vivo, conhecidos como “streamers”, criam comunidades de fiéis apoiadores, com os quais jogam, conversam e até assistem filmes, interagindo em tempo real com o público.
A Twitch é considerada líder do nicho de plataformas de transmissão ao vivo de jogos eletrônicos. Estima-se que, apenas em abril de 2021, mais de 1 bilhão de horas foram assistidas pelos usuários. De acordo com o TwitchTraker, o serviço aumentou 120% sua audiência durante o ano de 2020. Com mais espectadores interessados, mais streamers surgem, uns por hobby, outros por profissão e tantos outros por necessidade. Isto porque a Twitch, apesar de ser gratuita, disponibiliza sistemas de assinaturas mensais pagas, doações e outras formas que o público usa para apoiar financeiramente estes apresentadores.
A Paraíba não ficou de fora desta guinada na criação de conteúdo para web. Mayara “yTapioca” Rocha, 21 anos, é estudante de Tecnologia de Gestão Ambiental pelo IFPB e, desde 2018, tem as lives como principal fonte de renda. “Eu cursava Química na UFPB quando comecei as transmissões, mas logo na primeira semana eu recebi uma ‘gank’ do Grátis150ml, um dos maiores streamers do Brasil, com cerca de mil pessoas e senti que aquilo era um sinal”, contou. “Gank” ou “raid” é como é chamado o intercâmbio de espectadores de uma transmissão que está terminando para uma outra já em andamento, como uma forma de apoio entre a própria comunidade de streamers.
“Decidi me dedicar naquilo o ano inteiro para ver se eu tinha futuro, se eu me encontrava. E deu tudo certo! Eu consegui dar um ‘upgrade’ no meu PC, consegui viajar para a BGS [Brasil Game Show] e com o tempo fui desenvolvendo mais e mais”, disse. yTapioca, como é mais conhecida na Twitch, possui hoje cerca de 23 mil seguidores na plataforma. Sua irmã Beatriz “BeachuSZ” Rocha, 22 anos, também entrou no mundo das transmissões ao vivo por influência de Mayara, em junho de 2020. “Eu queria virar criadora de conteúdo desde 2017. [Mayara foi] Quem me ensinou tudo, os softwares, os recursos… Apesar de eu estar no começo, já temos uma comunidade de seguidores em comum”, comentou. Ambas fazem gameplays e sessões abertas de filmes e séries.
Foi também durante a pandemia que Patrícia “PatiCakeS” dos Anjos, 31 anos, entrou neste infinito universo. “Sou formada em Design e já passei por diversas experiências na vida. Trabalhei como modelo, morei na China, fui Miss Paraíba 2013 e, nos últimos três anos da minha vida, me dediquei ao papel de mãe”, compartilhou a paraibana que hoje reside nos Estados Unidos. “Comecei a fazer lives em setembro de 2020 como uma forma escape e distração da loucura do lockdown devido a pandemia. Inicialmente, as lives eram exclusivamente em inglês, mas aos poucos fui alcançando a comunidade brasileira, que hoje se faz maioria no canal”, contou. Pati contabiliza atualmente mais de 10 mil seguidores em seu canal e se divide entre lives de bate-papo e gameplays de jogos como Phasmophobia, Devour e Valorant, organizando, inclusive, campeonatos.
Com o índice de desemprego batendo recordes no Brasil, cada vez mais jovens buscam esta alternativa para se sustentarem. Um desses casos é o de Mawa (22), que conseguiu unir o útil ao agradável. Ela acompanha o meio desde 2014, quando teve seu primeiro computador e começou a jogar League of Legends. “Passei a assistir criadores de conteúdo de games e vi as possibilidades desse mundo. Ele também existe para outros tipos de conteúdo, como bater papo e fazer música”, explicou. “Faço também lives musicais, que são minha paixão e o que mais amo fazer, geralmente com karaokês, e também mostro minhas composições. Meu público parece gostar bastante”, disse.
Mawa está inserida em uma das mais democráticas equipe de streamers do país: o Wakanda Streamers. O projeto reúne e dá suporte a produtores de conteúdo negros e negras. “Foi o projeto quem me deu a mão quando eu estava à beira de desistir, quando não tinha espectadores e estava muito mal. Ele me acolheu”, disse. “No Wakanda, nós, streamers pretos e pretas, temos apoio psicológico e de divulgação, incentivos, orientações e trocas de experiências. Existe espaço para todo tipo de conteúdo e todo mundo se fortalece”, contou.
Homens brancos ainda são mais bem sucedidos no “streaming”
Na última quinta-feira (6), um hacker anônimo publicou no fórum 4Chan dados roubados da Twitch que incluíam informações pessoais de todos os usuários da plataforma, entre elas, o ranking dos que mais faturaram desde 2019. Em nota, a Twitch confirmou que houve um vazamento de dados.
Mas além de expor milionários faturamentos, um fato foi evidenciado: homens brancos representam a maioria esmagadora dos mais bem sucedidos. De acordo com uma análise feita pelo Núcleo, dos 77 maiores streamers de língua portuguesa que aparecem na lista, apenas cinco são mulheres -- e, ainda assim, o público delas é cerca de 30% menor se comparado a canais comandados por homens. No âmbito global, apenas três mulheres estão entre os 100 maiores canais da Twitch e elas ocupam, respectivamente, as posições 38ª, 49ª e 71ª.
Isso leva por água abaixo pensamentos machistas que permeiam entre criadores de conteúdos e suas audiências masculinas, como a falsa afirmação de que é mais fácil ser streamer mulher uma vez que, supostamente, o objetificado corpo feminino, por si só, já chama atenção dos homens.
Para nossas entrevistadas, é, na verdade, ainda mais desafiador ser uma mulher streamer. “Somos vistas como motivo de piada”, afirmou Mawa. “Existe uma pressão grande para que a mulher seja uma ótima jogadora para não receber ‘hate’ nas lives”, completou. Quanto à objetificação, ela afirma já ter sido julgada por sua vestimenta e ser vítima de assédio com certa frequência. “Mesmo gostando de roupas decotadas, já fui criticada quando usei para uma live, assim como por não estar maquiada. Não vejo esse mesmo peso estético em homens”, comentou.
Mayara também compartilha das mesmas situações negativas, indo um pouco além em sua análise. “Já me deparei com comportamentos e pessoas tóxicas em todo o universo gamer. No ramo empresarial de parcerias e patrocínios, é difícil ver mulheres contratadas porque somos constantemente subjugadas”, pontuou. “As streamers não ocupam certas posições de empresas justamente porque a análise dos perfis para contratação já é feita com outros olhos desde o momento em que sabem que somos mulheres”, disse. ‘Tapi’, como é carinhosamente chamada por seus seguidores, acredita ter formado um espaço seguro em seu canal. “A minha comunidade é incrível e me apoia por quem eu sou, independente do fato de eu ser mulher. Sou respeitada antes mesmo de saberem que sou casada; há respeito por quem eu sou”, finalizou.
Criar uma comunidade mais segura para mulheres é o grande objetivo de Pati. Ela, que já trabalhou como modelo, afirma não sentir, muitas vezes, liberdade em seu próprio canal. “Hoje a minha comunidade na Twitch se tornou uma grande família, mas não foi um caminho só de rosas. Infelizmente no mundo virtual existe muita toxicidade e ser mulher no universo gamer te deixa bastante vulnerável. Então quero poder construir uma grande comunidade de apoio a mulheres gamers, onde o foco seja realmente no conteúdo para que, dessa forma, fiquemos confortáveis para ‘abrir’ lives com ou sem maquiagem e com o vestuário mais confortável sem a preocupação do que um decote pode insinuar”, concluiu.
A representatividade negra na plataforma foi outro ponto levantado por Mawa. “Eu passei por vários momentos problemáticos que quase me fizeram desistir. No meu primeiro dia, recebi ataques com palavras de baixo calão e racistas que duraram horas. Eu bania essa pessoa e ela criava mais dez contas diferentes para voltar a me atacar”, desabafou. “Por outro lado, isso me deu uma vontade a mais de continuar porque não haviam muitas meninas pretas na Twitch e as que existem não são famosas na plataforma. Eu queria ser uma incentivo e apoio para outras meninas pretas começarem a streamar e enfrentar essas pessoas preconceituosas”, contou.
Platinando o streaming
Viver de criação de conteúdo na web tornou-se, na última década, a profissão dos sonhos para milhões de pessoas ao redor do mundo. Essa nova carreira, entretanto, não é tão fácil quanto possa parecer. Tanto YTapioca quanto Mawa relataram exaustão quando passaram a fazer lives com mais frequência, à medida em que foram conseguindo parte de seus sustentos na Twitch. “Há um tempo atrás eu fazia cerca de 12 horas de lives por dia e isso começou a me esgotar bastante. Eu estava muito tempo online, no computador, e isso me fez muito mal. Decidi dar uma pausa das streams por três meses, e, quando voltei, diminuí a carga horária pela metade”, compartilhou Mawa, que busca complementar sua renda com um emprego fixo. “Mesmo sendo bastante difícil ganhar muito dinheiro com stream, eu ganho o suficiente para me manter enquanto não consigo um trabalho”, concluiu.
YTapioca também fez adaptações em sua rotina e trabalha seis dias da semana com streaming. “Meu calendário é de lives todas as noites a partir das 18h, folgando quase sempre aos domingos. Uso esse dia para dar conta da casa junto com meu marido e, principalmente, prezar pela minha saúde mental”, contou.
Cada uma dessas mulheres quer o streaming suas principais fontes de renda. Enquanto Mawa deseja ser reconhecida enquanto cantora, apresentando seu repertório autoral e cover ao vivo, yTapioca e PatiCakes desejam continuar com gameplays e realização de campeonatos de E-sports.
Independente do caminho a ser seguido e se impunham microfones, mouses ou joysticks, estas paraibanas estão no game.