A natureza dos cactos difere consideravelmente da natureza humana. Apesar da presunção do homem tomar para si este símbolo de resistência e simplicidade, um cacto não costuma esconder de ninguém seus espinhos e só revela suas flores após um longo processo adaptativo. É exatamente o avesso do que propõem as relações humanas. Este caráter contraditório que faz irromper beleza em territórios adversos, que podem ser a mente de um escritor angustiado ou a aridez do espaço urbano, está na seiva que percorre as 66 crônicas do quinto livro do escritor paraibano Tiago Germano, A índole dos cactos (Caos & Letras, R$ 50).
A coletânea do autor semifinalista aos prêmios Jabuti e Oceanos em 2023 está atualmente em campanha de pré-venda no Catarse (www.catarse.me/cactos), na qual permanece até o final de janeiro. Esse é um livro que reafirma as qualidades literárias de Germano já observadas em outros gêneros, como o conto e o romance, em que o conteúdo memorialístico é o seu principal substrato. “A Índole dos Cactos tem um eixo de memória que é um pouco diferente do que eu já havia feito antes. Ela não está centrada no interior do personagem, está um pouco mais ligada a outras figuras que permeiam a minha infância, como minha mãe, meu irmão e meu tio. E a vertente urbana dele também acho que se aprofunda um pouco mais e traz alguns temas que eu não trazia antes”.
A obra está dividida em cinco partes, separando os textos como se fossem frações de uma representação botânica. Raízes é uma dessas partes que trata justamente da memória. Outra é Adubo, que traz crônicas de referências literárias, comentando autores que exercem influência no escritor, como Fernando Sabino, Gabriel García Márquez, Virginia Woolf e Franz Kafka. O eixo Enxertos apresenta personagens do cotidiano, trazendo a figura clássica do cronista deambulando pelas ruas. As outras partes são Espinhos e Flores, reunindo crônicas mais líricas, que brotam da analogia que difere a natureza dos cactos da humana.
“Gosto muito de dividir o livro nessas estruturas, porque acho que raciocino as narrativas breves um pouco como raciocino a lógica do romance também. Como unidade, a sequência de fechos como unidade, unidades parciais e unidades totais, que são justamente essas partes que, no conjunto, formam um todo. Seria esse meu cactário”, compara Tiago Germano. “Minha experiência literária vem de uma origem muito árida, no sentido de que quando comecei a escrever livros, não tinha a mínima ideia de como começar. E fui percebendo nessa índole do cacto, ele extrai de terras desenganadas as forças para se erigir da natureza. Na minha própria experiência literária, quanto mais vinham negativas, quanto mais vinham reações adversas em torno do meu fazer literário, mais eu me estimulava e mais eu insistia contra esse movimento de secura para tentar me afirmar de certa maneira na literatura”.
Foi em partes por essa secura e pelas negativas que recebeu em sua carreira que o autor decidiu publicar agora seu segundo livro de crônicas. É que o escritor mantém um certo sentimento de frustração devido às suas publicações mais recentes não terem saído por uma editora de grande porte no país e por ter, neste ano, acertado a trave das semifinais nos maiores concursos literários da língua portuguesa com o romance O que pesa no Norte. Ele aproveitou ainda o lançamento de A índole dos cactos para promover a reedição de seu primeiro livro de crônicas, Demônios domésticos, publicado em 2017 e que foi finalista do prêmio Jabuti. O leitor tem a opção, na campanha, de comprar os dois exemplares, uma oportunidade de perceber o desenvolvimento do ciclo literário de Tiago Germano.
Quando as folhas de uma planta perdem sua vida, o material em decomposição no solo tanto serve de fonte nutrientes para o seu desenvolvimento saudável como o seu acúmulo pode levar a proliferação de fungos e doenças. Algo semelhante acontece no enfrentamento do tom de morbidez presente na prosa de Germano. “A experiência com a morte é algo que rege os meus escritos muito em virtude de um passado traumático que eu narro em alguns textos, mas eu acho que abraço isso com muita tranquilidade, porque acho que é a única maneira que tenho de lidar com esse trauma mesmo. A morte é sempre insidiosa”.
Outro traço que dá forma e oxigena aos textos do escritor, que publica todo sábado uma crônica no caderno de Cultura de A União, é a sua inclinação para a descrição de cenas. “Tenho quase como uma muleta. Quando estou num momento de aflição literária, repouso ali na descrição das coisas da minha volta, e alguma coisa vai surgir. Isso é bom porque desbloqueia certos entraves que você tenha escrito, mas quando você vai ler uma segunda vez você começa a perceber que é um vício do autor. A gente tem que fugir de vício na literatura, o vício da literatura já é grande demais para a gente colocar esse vício nas palavras também”.
Para Tiago Germano, a semente de sua literatura sempre foi a crônica. É o terreno onde ele se sente mais confortável como escritor. Mesmo quando escreve um romance ele parte de uma lógica cronista, de observador que tem forte apego com a realidade, mesmo quando a usa para despertar os devaneios da linguagem. “O escritório do cronista é o banco da praça. Ele tem uma ligação muito forte com a cidade, mesmo quando está trancado dentro de casa. Tem um dilema que é estar transitando entre a escrivaninha e a janela”, assina Germano, que já tem prontos para serem publicados um livro infantojuvenil e um romance, além de outro em fase de conclusão. Todos produzidos pela reflexão de um cronista que sabe que quem olha o cacto é também por ele silenciosamente observado.
“A crônica continua mais viva do que nunca, a despeito da miopia de algumas pessoas que enxergam nela uma certa morte. A crônica está sempre enganando o leitor, está sempre se fingindo de morta para comer o traseiro dos defuntos. As pessoas não percebem que a crônica sempre dá um jeito de driblar as convicções que a gente tem a respeito dela, por isso que também às vezes eu coloco em dúvida até essa minha própria opinião de que ela vai sobreviver. A crônica está sempre jogando com essa noção que a gente tem de imortalidade, então ela se afirma, ela se alimenta também dessa frivolidade, dessa transitoriedade que a gente imputa nela”. Esse é um entendimento possível só porque a índole que alimenta os cactos também alimenta Tiago Germano.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 22 de dezembro de 2023.