Um prenúncio de morte e de grandes tormentas. É assim que, de forma geral, todas as antigas civilizações interpretavam o eclipse. Os povos da Antiga Mesopotâmia acreditavam que esta era uma mensagem enviada por Erra, deus da praga. Os Astecas realizavam sacrifícios oferecendo aos deuses pessoas de pele mais clara para que a claridade voltasse. Os aborígenes na Austrália entoavam canções e atiravam objetos sagrados em direção ao Sol para afastar o mau presságio de doenças, sangue e morte. Alterar a normalidade que define a passagem dos dias, apagando a luz do Sol e da Lua – símbolos da vida, provoca pavor e fascínio nas culturas de todas as civilizações da história até os dias de hoje.
A própria palavra eclipse tem origem no termo grego ekleipsis, que significa “abandono”, uma interpretação dramática de quando a Terra se sente desamparada na escuridão, abrindo uma fresta para a invasão de demônios e deuses do submundo. Mesmo com todo o conhecimento acumulado na idade contemporânea, o fenômeno natural continua a inspirar pessoas que se expressam por meio de produções de ordem artística, científica e mística. Todas elas contribuíram, de certa forma, para a evolução do entendimento amplo que se adquiriu na humanidade sobre a conjunção de astros, que ocorre hoje, sob o olhar curioso e privilegiado dos paraibanos.
“Os mitos que havia em função do eclipse motivaram a ciência a tentar compreender esse fenômeno. No ano de 585 a.C., o astrônomo e filósofo Tales de Mileto conseguiu pela primeira vez prever a ocorrência de um eclipse. Quando ele explicou que isso era um fenômeno natural, a gente teve a oportunidade de estudar a ocorrência dos eclipses, saber porque eles acontecem e quando eles iriam ocorrer. Isso motivou bastante o desenvolvimento da ciência sobre os fenômenos naturais”, considera o astrônomo paraibano Marcelo Zurita. Para historiadores, essa capacidade de prever eclipses através de cálculos matemáticos foi importante para reconhecer Tales de Mileto como o criador da Filosofia.
Não se sabe exatamente como Tales de Mileto conseguiu prever o eclipse, mas ele pode ter tido por fonte de informação os registros históricos das manifestações culturais do povo através do tempo. “O mais provável é que ele tenha observado o que a gente conhece hoje como ciclo de Saros, que é a diferença de tempo entre dois eclipses semelhantes em algum lugar da Terra, que é algo em torno de 18 anos e 11 dias. É possível que ele tenha se baseado nisso, pesquisando padrões de repetição”, acredita Zurita. A “invenção” de prever eclipses se tornou uma forma de controle de conhecimento e poder devido às crenças que consideravam o fenômeno como um sinal de revolta dos deuses contra o governante autoproclamado enviado divino.
“Os astrônomos eram muito bem empregados na Corte Real e uma das principais funções deles era prever a ocorrência de eclipses. Como havia muita superstição, era necessário que se conseguisse prevenir de alguma forma”, contextualiza Zurita. A história conta que um monarca chinês teria chegado a assassinar uma série de astrólogos por não terem acertado a data de um eclipse. E até Cristóvão Colombo manipulou a previsão de um eclipse para se salvar quando sua embarcação encalhou na Jamaica, em 1504. O explorador decidiu assustar e chantagear o povo nativo com a ameaça de que um castigo divino mancharia a Lua com vermelho sangue caso eles não os servisse. Ele sabia exatamente o dia e o horário que um eclipse lunar ocorreria na ilha caribenha.
É por todo esse passado que o obscurecimento dos astros ainda é fonte inesgotável de diferentes assimilações em todas as linguagens artísticas. Nessas produções, um traço cultural se repete: o eclipse domina a psique humana e exerce força sobrenatural e política. Na arte renascentista, o eclipse foi usado nas cenas da crucificação de Jesus para simbolizar a escuridão e a angústia, como na tela barroca A Elevação da Cruz, do alemão Peter Paul Rubens. Mesmo obras cubista de Diego Rivera se valeram do mesmo símbolo para criar um retrato do poeta espanhol Ramón Gomez de la Serna, em 1915, com um eclipse solar total substituindo o olho direito dele. Mas um dos primeiros artistas da história a retratar um eclipse solar com rara precisão foi Howard Russell Butler. As suas pinturas do início do século 20 chegaram a ser usadas por cientistas para estudar a coroa do Sol, uma vez que não havia como registrar com nitidez o fenômeno que aparece por tempo insuficiente no céu e que até deixou cego Galileu Galilei.
Na música, o maior sucesso da britânica Bonnie Tyler é ‘Total eclipse of the heart’, de 1983, um desses hits definidores do período oitentista em que a letra é escrita a partir do ponto de vista de um vampiro deprimido na imortalidade. Do pop ao rock psicodélico: Pink Floyd também tratou sobre os mistérios e as metáforas do espaço no álbum Dark Side of the Moon, de 1973. A conclusão do disco antológico é justamente com a faixa ‘Eclipse’. Bem baixinho em bossa nova, João Gilberto cantou ao violão sobre a “ausencia de luz en el mar” na canção em espanhol igualmente chamada ‘Eclipse’. Caetano usa em sua composição de ‘Eclipse oculto’ a figura de linguagem do que mingua para confessar uma relação sexual fracassada em que “na hora da cama nada pintou direito”.
O cinema deve algumas de suas imagens icônicas ao alinhamento dos astros. É com um eclipse do Sol pela Terra e pela Lua que tudo tem início em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, a obra-prima de ficção científica realizada por Stanley Kubrick, em 1968. Desde bem antes, o encantamento com o fenômeno já havia influenciado o diretor francês Georges Méliès, nos primórdios do cinema mudo, em 1907. Cinco anos depois de criar Uma Viagem à Lua, o cineasta usou efeitos especiais inovadores até então para fazer o curta O eclipse solar em lua cheia. Outro mestre do cinema de fantasia, James Cameron não resistiu ao efeito de um eclipse na hora de criar a batalha final de Avatar: O caminho da água, de 2022. O fenômeno traz consequências alterando a trama e os habitantes do planeta Pandora.
O eclipse altera também as pessoas que afirmam se conectarem de forma energética com a natureza. Ele afeta a poeta, cantora e compositora paraibana Socorro Lira. Ela celebra em seu repertório canções que interpretam o universo por uma perspectiva folclórica, cantando as sabedorias e crenças populares. É fácil ter uma percepção pedante diante dos saberes ancestrais, mas eles narram as transformações de nossa identidade cultural.
“No Sertão da Paraíba, o povo sempre falava da força da Lua. As pessoas que são antenas e canais abertos para outro mundo além-matéria, as mais sensíveis e chamadas de loucas, são mais afetadas por fenômenos naturais, como o elipse. É para todo mundo esse benefício, para quem entende como benefício, mas pode servir a crenças e ideias maliciosas. A alma é profunda”, explica Lira. “Só acho ruim o mal uso de qualquer conhecimento, mas o bom uso vai nos levar sempre ao melhor caminho. Cada pessoa entende a vida por um prisma e não existe oposição entre essa perspectiva científica cosmológica e as tradições mitológicas. Respeito outros conhecimentos, principalmente os que eu não domino”.
No México e em outras regiões da América Latina, ainda há quem oriente as grávidas a fecharem as portas e as janelas durante um eclipse para que isso não cause malformações no bebê. Na Índia, o temor é com a proliferação de micróbios. Por lá, aconselha-se jejuar e que as pessoas se desfaçam de comidas já cozinhadas. O ritual de Socorro Lira será diferente, segue outra direção. “Eu quero parar, ficar quietinha e mentalizar o mundo que eu desejo para nós. Não quero dizer nada e ser como uma pedrinha ou uma folhinha. Quero estar no meio disso tudo, desse espetáculo natural. Tomara que ele nos inspire”. São rituais como esse ou como do astrônomo Marcelo Zurita com seus telescópios e câmeras apontados para o céu que ajudam a manter vivo o mesmo deslumbre de tempos remotos com as mais diversas leituras de um eclipse.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de outubro de 2023.