por Joel Cavalcanti*
O Festival de Brasília é o mais antigo do gênero no Brasil e também um dos mais conceituados no circuito nacional de cinema. Se para o público isso significa uma garantia de exibição de produções importantes e representativas do país, para os realizadores isso consiste em uma grande concorrência para chegar até o histórico Cine Brasília. Na edição de número 55, dois curtas paraibanos cruzaram essas fronteiras e estão na disputa pelo Troféu Candango na Mostra Competitiva Nacional: Calunga maior, de Thiago Costa, que estreia hoje, e Nem o mar tem tanta água, de Mayara Valentim, a ser exibido na próxima sexta-feira (18).
Em Calunga maior, Ana é uma escritora que acaba de ficar órfã e, durante um processo de mudança, encontra uma carta da avó para a sua mãe na qual são revelados segredos familiares. Essa é a senha para que a personagem parta em busca da descoberta dos caminhos percorridos pela ancestral. É através de uma experiência onírica e insólita que ela tem acesso às revelações que procurava do mundo dos mortos. Os laços que a personagem principal deseja reatar são os mesmos que especialmente os povos negros e indígenas querem realizar em suas trajetórias diaspóricas.
“A gente não teve direito à memória. Nós não conhecemos quem é a mãe de nossa avó nem temos o direito de saber como é a nossa árvore genealógica, qual a nossa descendência. O filme é um gesto de inventar memória a partir de uma ausência que vem da relação com avó que Ana não conheceu, que a mãe não permitiu que ela chegasse até a avó. O que me move é esse direito à memória, de pensar sobre isso com o filme. Muitos pesquisadores negros, quando vão discutir memória negra, se debruçam nos arquivos institucionais. Nesse filme, eu proponho pensar a subjetividade e criar narrativas a partir de nosso arquivo”, destaca o cineasta natural de Bananeiras. Thiago Costa é também roteirista do curta e levou dois anos produzindo o filme que foi financiado pelo edital Margarida Cardoso, da Lei Aldir Blanc na Paraíba.
Com o curta Santos imigrantes (2018) no currículo, o diretor atinge pela primeira vez com Calunga maior um alcance que uma produção maior em recursos e em equipe – majoritariamente preta – pode proporcionar. Mesmo sem abdicar das motivações criativas que movem o seu fazer artístico, o curta rompeu o nicho de exibição que as obras de Costa estavam associadas, como as mostras temáticas que privilegiam narrativas negras ou LGBT. Em Calunga maior, as paisagens têm caráter narrativo a partir do contexto histórico das locações realizadas na Baía da Traição, Barra de Camaratuba, Praia de Tabatinga e em João Pessoa. A produção chega a Brasília credenciada com o prêmio de aquisição que recebeu do Canal Brasil e do SPCine Play, consequência por ter sido a vencedora de Melhor Curta Paraibano e do Júri Popular concedido pelo FestinCineJP, realizado em agosto, na capital da Paraíba.
Definindo-se como um artista transdisciplinar que tem interesse no que ele chama de “insuficiência da linguagem”, a carreira cinematográfica de Thiago Costa pode ser encarada até certo ponto como uma extensão de seu trabalho como artista visual. Isso está presente desde a construção imagética dos espaços a detalhes como quando a imagem da advogada referência do movimento negro Vera Baroni aparece na tela através de uma fotografia. Na imagem, ela usa vestes vermelhas e brancas, em uma estampa do Afoxé Oyá Alaxé, de Recife, que já foi motivo de uma escultura têxtil exposta por Thiago Costa. “Eu penso o cinema com métodos de artes visuais. O processo de pesquisa, de composição de cena, de trilha e também no processo de preparação de elenco, que é bastante poético. Não separo muito minha relação do cinema com as artes visuais”, explica o profissional. No elenco principal estão nomes como Mari Miguel, Laiz de Oyá, Norma Goés, Danny Barbosa e Vera Baroni.
Enquanto Calunga maior segue sua carreira nos circuitos de cinema nacional, Thiago Costa já se dedica no momento ao seu novo curta, Axé meu amor, financiado pela Amazon Prime, e que deve estrear em algum grande festival internacional no ano que vem, antes de ser disponibilizado na gigante do streaming. “Esse filme é meio híbrido: meio doc., meio ficção. É um road movie de João Pessoa a Salvador em que uma mãe de santo descobre que precisa fazer esse ritual antes de a mãe de santo dela morrer”, adianta o cineasta, que escolheu como protagonista a mãe Renilda, atriz sem qualquer experiência prévia na profissão. A ideia é expandir o roteiro de Axé meu amor para uma série ou um longa-metragem.
Indígena, sertaneja e rural
Na sexta-feira será a vez da estreia de uma diretora do Sertão do Ceará que há sete anos mora em Cabedelo. Atuando no cinema desde então como técnica de som direto e produtora, Mayara Valentim apresenta Nem o mar tem tanta água, curta que foi rodado em cinco dias em Cabedelo no ano de 2021 e aborda a vida de três jovens cicloativistas que dividem uma mesma casa, na região portuária, mas tem essa convivência interferida pela pandemia. “Tudo no filme é visto por essa perspectiva da complexidade e vulnerabilidade que eles viveram muito à flor da pele”, destaca a diretora.
Em cerca de 20 minutos, o filme é guiado pela personagem de Babi, interpretada pela atriz e cantora Lais de Oya, em sua trajetória de autodescoberta em busca de uma forma de expressão artística na cidade onde vive e luta por espaço para conquistar uma autonomia afetiva, sexual e social. “Ela se movimenta de bicicleta para cima e para baixo, e é uma mulher que não quer depender das pessoas, mas tenta ser leve sempre”, detalha a realizadora, que contou com a parceria do Coletivo Mangaba e a produtora Filme Urgentes. O elenco também é composto por Paulo Philippe, Raana Rocha, Anderson Breno e Letícia Albuquerque.
Para Mayara Valentim, representar a Paraíba no Festival de Brasília ao lado de Calunga maior é algo muito honroso. “São dois filmes de diretores não brancos, com protagonistas negras e a maior parte do elenco negro também. Isso é a realização de um sonho. No meu filme de estreia já ir para uma janela de exibição tão grande é fantástico e uma grande conquista para mim. Sobretudo, é um ato político extremamente significativo, porque tudo que eu faço, assim como essa direção, é atravessado pela minha vivência. Sou uma mulher indígena, sertaneja e também rural. Estar no festival mais longevo do país é uma grande honra”, conclui a realizadora.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 16 de novembro de 2022.