Ele se considera um pessimista irremediável. “Se você conhecesse o botequim que eu frequento, aqui na Lapa, ficaria mais pessimista ainda. Se ficar seis horas seguidas por lá, só vai ouvir falar de futebol”, comenta o poeta, tradutor, crítico e editor carioca Alexei Bueno, cuja trajetória se desdobra por diversas vertentes da literatura, e que está em João Pessoa para participar da primeira edição do Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba), que acontece de hoje a sábado (veja a programação de hoje no quadro). Ao lado da pesquisadora italiana Maria Bocicchio e do professor paraibano Milton Marques Júnior, Bueno comporá amanhã a primeira mesa de discussões do evento, intitulada “Identidade e reconhecimento: Camões, o estrangeiro”, às 10h, no Centro Cultural São Francisco.
Conhecido pela dedicação à poesia, traduções e estudos sobre o patrimônio literário, com destaque para a produção poética de Augusto dos Anjos, Bueno abrirá o dia de amannhã abordando a obra de Camões e sua relevância na discussão sobre identidade. Em conversa com A União, Alexei compartilhou reflexões sobre a literatura contemporânea e a formação cultural no Brasil.
A relação do autor com a literatura começou cedo, quando ainda ouvia poemas dos autores românticos brasileiros em família, marcando um período inicial de encantamento com a palavra. “Com a chegada do objeto livro, aí, sim, a literatura se tornou o eixo da minha vida”, afirma. A paixão consolidada na infância resultou em uma carreira prolífica, abrangendo poesia, ensaios, traduções e organização de obras completas de autores clássicos.
Sobre o que é feito na contemporaneidade, Alexei revela uma abordagem seletiva. “Minha perspectiva da literatura contemporânea é limitada, pois releio mais do que leio. Há obras fundamentais do engenho humano que não consegui ler até hoje”, confessa.
Entre suas leituras recentes, afirma estar relendo pela quarta vez o Dom Quixote e as obras de Eurípides, enfatizando sua afinidade com os clássicos. A poesia, ele observa, permite maior acompanhamento crítico, ao contrário da ficção, cuja vasta produção torna impossível abarcar tudo.
“Depois de certa idade — e eu estou com 61 —, creio que qualquer um pode dar-se ao luxo de certo distanciamento em relação à contemporaneidade, que é, obviamente, uma coisa aleatória”, pondera.
Anos de edição
O trabalho de Alexei como editor inclui a organização de mais de 10 edições de obras completas para a editora Nova Aguilar. Ele considera essa fase uma de suas mais importantes contribuições.
“Deve ter sido o de minha mais meritória ação para a coletividade, período do qual tenho grandes saudades”, reflete. No entanto, ele destaca também edições realizadas para outras editoras, demonstrando o valor do esforço coletivo na preservação da memória literária.
Dentre seus projetos mais notáveis, destaca-se o livro A Escravidão na Poesia Brasileira – Do Século XVII ao XXI (Record, 2022, 714 páginas), no qual reúne 81 poetas — seis deles ainda vivos — ao longo de três séculos e meio, incluindo nomes contemporâneos. Ele comenta os desafios enfrentados na pesquisa.
“O grande desafio é essa questão infernal dos direitos autorais, até 70 anos após a morte do autor. Para mim, em certos casos, deveria haver uma restrição ao direito de propriedade por interesse público, caso, por exemplo, do tombamento em relação ao patrimônio histórico”, argumenta.
Hábitos de leitura
Apesar dos avanços tecnológicos, Alexei não vê problema na coexistência entre o livro físico e outras plataformas de leitura. Contudo, mostra-se incrédulo diante de certos hábitos de leitura no Brasil.
“Acho que, para ler certas coisas, seria de melhor proveito pescar, dançar ou jogar xadrez”, diz, sem qualquer reserva quanto ao seu ceticismo. Para ele, o panorama educacional e cultural do país é um reflexo de questões estruturais mais amplas. “Sempre fiquei impressionado com a apoteótica ignorância do povo brasileiro”, afirma, comparando o cenário local aos de outros países da América do Sul.
Alexei também vê com reservas o domínio do eixo Rio–São Paulo no mercado literário e acadêmico, “um eufemismo para um lobby de grandes forças do mercado”. Segundo ele, forças desse sistema criam uma barreira que dificulta a entrada de autores de outras regiões.
“Qualquer um sabe que boa parte da grande literatura brasileira foi e é produzida no Nordeste. Se o autor não conseguir penetrar nesse baluarte, e ser adotado por ele, continuará com uma limitada presença regional”, avalia.
Outro aspecto central na trajetória de Alexei é a tradução de poesia. Ele destaca o rigor necessário para preservar forma, métrica e musicalidade dos textos originais. “Sempre traduzi maciçamente poemas em forma fixa, com fidelidade canina à forma original, métrica, rima, ritmo, etc”, explica.
Ainda assim, reconhece as limitações do processo: “Há poemas de impossível tradução, como muitos do Verlaine ou do Camilo Pessanha, para citar um autor de língua francesa e outro da nossa língua, mas há traduções de poesia que alcançam resultados espantosos, e a escola — digamos assim— de tradução poética no Brasil é de alto nível”.
Camões e novos projetos
Em setembro, Alexei publicou, em Portugal, Camões, Além do Desconcerto (Rosmaninho Editora de Arte, 2024, 61 páginas). O livro presta uma profunda homenagem aos 500 anos de nascimento do autor de Os Lusíadas, que reúne o poema “Camões, em nós, por nós” e mais dois poemas líricos de sua autoria, também dedicados ao poeta lusitano. Ainda em 2024, Alexei também publicou o texto da conferência com a qual inaugurou, em junho, o ano comemorativo do meio milênio de Camões, no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.
Ao ser questionado sobre os conselhos que daria a jovens leitores e escritores acerca da importância da leitura, dá uma cáustica resposta: “Não conheço ninguém que se tenha aproximado da literatura por conselhos. O sábio conselho para qualquer um é abrir um banco ou uma financeira”.
O escritor também revela estar finalizando um novo livro de poemas e menciona projetos futuros, incluindo livros sobre arquitetura e cinema, duas grandes paixões. “No último caso, tenho um livro que considero de grande importância para publicar, e isto já há alguns anos”, afirma.
Para Alexei, eventos como o FliParaíba desempenham um papel essencial na democratização da cultura e na valorização de autores de outras regiões.
“Falarei de Camões, que é inesgotável. A identidade e o resto vêm em acréscimo”, adianta, cônscio de que o fortalecimento da leitura como hábito coletivo torna-se uma tarefa desafiadora em um país com tantas lacunas educacionais. Reafirmar a força atemporal da literatura, no entanto, é preciso!
PROGRAMAÇÃO DE HOJE
10h – Encontro de Realizadores de Festas e Festivais de Literatura da Paraíba (Consistório)
16h – Feira de livros, lançamentos e sessões de autógrafos (Pavilhão)
17h – Vernissage da exposição O Rosto de Camões – 10 Ideias para um Futuro Descolonizado, de João Francisco Vilhena (Portugal)
18h – Leitura coletiva: Os Lusíadas (Palco)
20h – Cerimônia de abertura e entrega dos prêmios Redação Nota 1000 (Nave central)
21h – Concerto da Orquestra Sinfônica da Paraíba (Nave central)
- Entrada franca
- No Centro Cultural São Francisco (Ladeira São Francisco, s/no, Centro, João Pessoa)
Clique no link e acesse o site oficial do evento
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de novembro de 2024.