O Jornal A União inicia hoje uma série de reportagens apresentando os principais nomes do universo das histórias em quadrinhos que já tem suas presenças confirmadas no Artists’ Alley do Imagineland deste ano. Essa é a área do evento de cultura pop considerada como “o coração da convenção”, pois é a partir dos traços e narrativas criadas pelos quadrinistas que surge quase todo o resto das produções nerds que devem atrair milhares de visitantes de 26 a 28 de julho para o Centro de Convenções de João Pessoa. Quem abre esta série é um personagem que está no início de tudo: Deus, das tiras Um sábado qualquer, do designer gráfico e cartunista carioca Carlos Ruas.
Dizer “início de tudo” não é apenas um jogo de palavras. Quando Ruas começou sua carreira, há 14 anos, as únicas referências de sucesso nas HQs nacionais para ele eram Mauricio de Sousa e Ziraldo. Hoje, seu trabalho o leva para as maiores convenções do país, onde encontra a companhia de uma legião de outros profissionais como ele, que só no Imagineland, por exemplo, somarão 80 quadrinistas, provando que Um sábado qualquer tem um alcance muito além do paroquial. Com mais de três mil tiras publicadas desde 2009, Ruas possui cerca de 2,5 milhões de seguidores em suas redes sociais. É lá que o artista encontra um público fiel, brincando com Deus e, milagrosamente, sem que isso ofenda frontalmente nem cristão, nem ateu.
“Hoje está mais fácil fazer piada com Deus do que com política no Brasil. Então, acho que eu consegui, de uma certa forma, não me envolver nessa polarização. Virei ‘café com leite’. Eu acho que tem um ateu e um cristão brigando, rolando no chão quando eu passo. Os dois acenam para mim, felizes, eu aceno de volta e continuo andando. Acho que é como eu me sinto hoje”, ilustra o criador de Um sábado qualquer, Cães e gatos e Mundo avesso. A disputa pelo controle da narrativa divina está cada vez mais no centro do debate político-eleitoral, especialmente na internet, mas o tipo de humor proposto por Ruas é o que lhe deu saídas contra o purgatório das redes. Para chegar a esse ponto, só com bom humor e uma clara definição artística, que está na gênese de seu personagem, nascido de um autor que se considera agnóstico querendo discutir religião em um país massivamente formado por cristãos.
Carlos Ruas estudou em uma escola católica, sua avó era espírita e o pai, ateu. “Já cresci numa lambança religiosa que me deixou uma criança muito curiosa que gostava muito de estudar esse assunto. Quando fui criar as tirinhas, precisava de um personagem e pensei no que eu gostava, nos assuntos que dominava. Não pode ser um pensamento só mercadológico, tem que ter um prazer envolvido. E, no meu caso, adorava estudar questões existenciais. E aí eu criei Deus”, lembra ele. Mas sabendo que sua criação não se mantém sem igreja, ou melhor, sem leitores, o autor precisou se tornar dono do pasto e virar um empresário desde cedo.
Através de um pequeno blog, fazendo postagens diárias que acabavam sendo republicadas em sites de humor maiores – como o Jacaré Banquela –, o crescimento foi arrebatador. Carlos Ruas soube operar muito bem num momento de transição dos modelos de negócio on-line, fazendo as apostas certas nos momentos decisivos. “Com o início da internet, principalmente nos anos 2000, muita coisa mudou. Quando eu comecei, só tinha mídia impressa e televisiva. A virtual estava nascendo, ainda era um bebê e nem eu enxergava nela um potencial, mas, graças aos deuses, consegui surfar nesta onda. O dinheiro começou a entrar no mundo virtual com lojas on-line, financiamentos coletivos, coisas que não existiam antes. E a gente acha que empresário e artista são extremos numa régua, só que não são. Para viver da sua arte, você tem que empreendê-la. Isso é fundamental para viver daquilo que ama”, contextualiza.
“Multiplicai-vos”
Para se ter uma ideia, segundo dados da plataforma Catarse, Ruas arrecadou mais de R$ 2 milhões em oito campanhas. Lucrar com Deus da forma que Ruas faz não é nenhum pecado, nem traz qualquer conflito ao perceber que foi Ele quem deu tudo que o quadrinista sempre sonhou. “Eu me considero uma pessoa cética e sou muito bem resolvido como cético. Sou um dos poucos céticos do Brasil que pode dizer que, se não fosse por Deus, não estaria aqui. Literalmente”, brinca ele. “Cheguei a uma conclusão, após muita reflexão, que o destino é a aleatoriedade do seu interesse. O mundo ocorre muitas aleatoriedades, mas aquela que te interessa, você chama de destino”.
Escrevendo sua própria história, brincando de ser Deus em parceria com Ele mesmo, Carlos Ruas é incentivador da divulgação científica, investindo pessoalmente em projetos deste tipo. A palavra que ele mais cultua é a de um dos filósofos mais influentes da história ocidental. “O Aristóteles falava que você só se sentiria preenchido quando se encontrasse no universo. Ele enxergava o universo como uma grande engrenagem, como se fosse um relógio, tudo está encaixado e funcionando. E, às vezes, você não está encaixado porque está em uma busca, mas quando se encaixa nesse relógio, quando encontra aquilo que você veio para fazer no mundo, você se sente preenchido, encaixado nesse grande relógio chamado universo. Então, como faço aquilo que amo e dedico todo o tempo da minha existência para isso, eu me sinto muito encaixado no universo fazendo aquilo que eu amo”, conclui Carlos Ruas.
Para mais informações sobre o Imagineland e adquirir os ingressos, basta acessar o site do evento (imagineland.com.br).
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 18 de fevereiro de 2024.