Chico Buarque e Milton Nascimento cantam em “O cio da terra” que devemos conhecer os desejos do chão que nos alimenta. A artista visual paraibana Marlene Almeida certamente sabe dos anseios de sua matéria-prima, coletada para o desenvolvimento dos pigmentos que utiliza para compor seus quadros, esculturas e elementos de instalações. Com parte deste catálogo, a artista promove, desde o último dia 16, a exposição individual Histórias da Terra, na Galeria Marco Zero (situada no bairro de Boa Viagem, em Recife).
Estão expostas 50 peças, inéditas para o grande público, sob curadoria da historiadora Tereza de Arruda. As tintas utilizadas para estas e outras produções são desenvolvidas de maneira artesanal pela artista, que tem como resultado um sem número de tons terrosos. “Eu coleto uma porção que não chega a ser uma xícara de chá. Mas com este pouquinho, eu consigo fazer uma grande quantidade de tinta”, explica Marlene.
Esta também é a primeira exposição coletiva da artista em Pernambuco depois de muitos anos. Para esta volta, a artista visitou diversos municípios desse estado em busca de novas amostras de pigmentos que já havia extraído anos antes, para produzir um imponente mapa pernambucano com o retrato de todas as suas 185 cidades – todas elas pintadas com uma cor diferente.
Tenho descoberto um Brasil que se multiplica em incontáveis pequenos ou grandes territórios, ricos em mistérios e belezas próprias -- Marlene Almeida
Abaixo do mapa, há uma fileira de sacolinhas plásticas com um punhado de cada solo recolhido. A exposição também emula as paisagens que a artista encontra na realidade: “Apresento uma visualidade que descortina detalhes de diferentes tipos de solo e indico uma geografia rica em vales, montanhas, cavernas, veios e veias”.
Dentre as outras obras selecionadas para o Histórias da Terra, Marlene destaca “Abismo como Jomard”, produzida em homenagem ao professor e cineasta de Pernambuco Jomard Muniz de Britto, com quem conviveu quando era jovem. Jomard foi docente da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no período em que ela era estudante de Filosofia.
“Tenho lembranças carinhosas desse mestre que nos ensinou e ensina a importância da liberdade e coragem para romper barreiras. Ainda nos anos 1980, ele criou a exposição Tempos Espaços dos Abismos, da qual participei com a obra ‘Terra’, uma escultura esférica que representava o nosso planeta”, relembra.
A terra na infância
A terra é um elemento que encanta Marlene desde antes de ela começar a trabalhar como artista visual. Data da infância, na cidade de Bananeiras, a sua primeira imersão naquilo que viria a ser a sua matéria-prima: ainda criança, leu um livro sobre o fascínio do pintor francês Paul Cézanne pela Montanha de Sainte-Victoire – esta foi eternizada por ele em um de seus quadros mais conhecidos.
Depois, ela mesma quis pintar a “sua” montanha. “Com 12 ou 13 anos, iniciei um curso de pintura no colégio em que estudava. Desde então minha trajetória esteve envolvida pelo amplo e maravilhoso contexto artístico que engloba estudo, busca e produção de obras. Ou pelo desejo que permanece na longa busca pelas questões da natureza, da arte, ou da arte da natureza”, revela Marlene.
Na juventude, em João Pessoa, conviveu de perto com uma gama de artistas – pintores, poetas, teatrólogos e cineastas, fundando o coletivo Geração 58. “A militância cultural, ecológica e política me aproximou desde cedo de companheiros como Paulo Pontes, Jomar Souto, Vanildo Brito, e muitos outros”, rememora.
Marlene também atribui à localização da capital e à sua formação geológica os primeiros contatos com o solo daqui e o entendimento deste elemento como substância principal de seus trabalhos, a partir do final da década de 1970. “A Formação Barreiras, unidade geológica que ocupa parte da costa brasileira desde o Pará até o Rio de Janeiro, aflora nas praias paraibanas em localidades que visito desde menina. A quantidade e beleza das cores das argilas me levaram ao interesse em estudar e pesquisar”, recorda.
A terra é matéria-prima
Marlene revela que o processo de fabricação dos pigmentos é longo, começando com pesquisa bibliográfica sobre o solo, partindo, depois, para uma pesquisa de campo. Apenas depois de conhecer bem sua matéria-prima Marlene parte para a coleta da terra e, por fim, o processamento do material. “É uma possibilidade sempre renovada de mergulho na natureza, descoberta de paisagens, caminhos, desconhecidos, formas, texturas e cores”, destaca.
Os primeiros passos para obtenção de suas tintas – as pesquisas – são parte fundamental de seu trabalho, de acordo com a própria Marlene. Além de seu interesse pessoal e artístico pelo solo e por suas possibilidades de aplicação, a artista pontua que desde os anos 1970 vem abolindo o uso de outros materiais sintéticos ou potencialmente tóxicos, como o com arsênico e o chumbo, substituindo-os por seus pigmentos não-danosos.
“Tenho descoberto um Brasil que se multiplica em incontáveis pequenos ou grandes territórios, ricos em mistérios e belezas próprias. É um universo especial que guarda todas as paisagens, das mais conhecidas às mais esquecidas, reconhecendo que todas são igualmente importantes”, enfatiza a artista.
A terra como futuro
Hoje com 82 anos de idade, Marlene continua produzindo de maneira profícua, mantendo destaque nacional. Recentemente, a artista foi selecionada para o 38o Panorama da Arte Brasileira: 1000º, evento bienal de exposição coletiva realizado no Museu de Arte Moderna (MAM), de São Paulo. A paraibana estará em evidência junto com outros 33 artistas de todo o Brasil. No ano passado, na Exposição Floresta Branca, em João Pessoa, ela expôs a série “Tauá”, reunindo 16 pinturas desenvolvidas a partir de sua técnica original. “Tauá”, a propósito, significa “barro” em tupi-guarani.
Num momento em que as discussões sobre a utilização sustentável de recursos naturais ganham corpo e voz, Marlene se diz orgulhosa por ter se antecipado a este tema. Ela defende que o “retorno à manualidade”, com técnicas artesanais e não-poluentes seja mais do que uma tendência no campo das artes, mas um percurso perene que orientará os artistas no futuro.
“Agora vejo, com muita satisfação, que o caminho que trilhei estava certo, que não há outra saída para a humanidade, e para a arte, senão trabalhar com a natureza e não apenas a partir dela; e muito menos contra ela”, finaliza a artista. A exposição segue até o próximo dia 30 de junho, de segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 10h às 17h; a entrada é franca.na Paraíba.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de maio de 2024.