por Joel Cavalcanti*
Em uma primeira impressão, o livro DR (Caderno Listrado, 80 páginas, R$ 60), do quadrinista paraibano Samuel de Gois, é uma história em quadrinhos em preto e branco, sem personagens e sem diálogos. Em uma leitura mais atenta, a discussão de relacionamento sem palavras leva a experiência dessa conversa em silêncio ao aprofundamento do sentido da angústia de quando não existe mais sintonia no amor entre dois personagens, que de fato estão lá, sem rosto, argumentando sobre suas contradições apenas com a silhueta de suas cabeças, que fervilham internamente.
A publicação lançada no início do mês em São Paulo, durante a Comic Con Experience (CCXP) – maior evento de cultura pop do Brasil –, chega agora à venda online compilando um material já havia sido divulgado, mas com o acréscimo de tiras inéditas que De Gois vem esculpindo digitalmente desde 2017, quando a série DR teve início. “O DR, na verdade, foi o meu primeiro projeto de experiência com formatos. Sua primeira versão partiu de um ano sabático que tive o privilégio de vivenciar após um divórcio tranquilo. Mas o livro entregue na CCXP 2022 passou por cinco anos de lapidação, redesenhando várias coisas, criando outras novas e matando as palavras”, explica o quadrinista, que durante esse processo produziu um material que dá seguimento a exploração dessa mesma linguagem, a exemplo das obras Hipocampo (2019), Fibrilação (2020) e Derrame (2021). Ele já havia publicado antes Filosofia de Banheiro (2013) e O que era nuvem ficou chuva. O que era seco ficou despedaçado (2015).
Em comum nas tiras que formam as publicações acima, que “tumultuam” o conceito de HQ para quem não está tão familiarizado com as suas possibilidades narrativas, há uma confessa vontade do artista de retratar “coisas tristes para se ficar pensando na vida”, característica filosófica que de forma geral pode ser encontrada em toda a obra do paraibano. “Já tem muito quadrinho engraçado feito por gente muito mais talentosa que eu por aí. E contarei minha linguagem na melancolia. Sou uma pessoa melancólica de acordo com minha terapeuta”.
Poucas coisas têm a capacidade de mudar um sujeito do que uma separação. Produzir DR depois do próprio divórcio mudou também a realidade profissional de Samuel de Gois. Fibrilação, por exemplo, ganhou um troféu HQMix no ano passado e DR foi um dos selecionados da Feira Des.Gráfica, do Museu de Imagem e Som (SP).
“Foi necessário me dedicar inteiramente à arte e experimentação para as coisas acontecerem. Meu primeiro prêmio com quadrinhos aconteceu no final de 2017, e foi em algum nível de consequência dessa dedicação. Depois surgiram oportunidades de ministrar oficinas, salões e lançamentos. Consegui uma editora e por aí foi”, enumera ele, que revela ainda ter passado por um profundo processo de mudança em sua percepção artística depois da pandemia. “O DR que eu faria em 2019 seria muito diferente do que lancei em 2022. Uma pandemia depois, muitas crises de ansiedade, burnout, um financiamento coletivo, um troféu HQMix, muita coisa aconteceu... Ao mesmo tempo parece que a pandemia roubou anos das nossas vidas”.
Desenhando de forma solitária, muitas vezes é difícil para quem trabalha com quadrinhos ter uma ideia da repercussão de seu trabalho por mais popular e abrangente ele seja, uma vez que o contato direto com o público é realizado apenas durante as feiras que ocorrem em outras cidades ou regiões do país, como ocorreu na CCXP, que trouxe mais que lucros com a venda do livro. “Um evento deste tamanho é bom para entender melhor o alcance do meu trabalho, que sempre é maior do que imagino. Também me ajuda a furar bolhas, apresentar para mais pessoas. Vejo meu trabalho às vezes muito destoante do que tem na maior parte da feira, e ver que, mesmo assim, recebi muita aceitação e carinho é gratificante”.
Produzindo quadrinhos desde 2004, Samuel de Gois tem feito da experimentação um meio de desenvolver uma forma de comunicação muito própria, que ele compara a um jogo. “Quando se trata de experimentação todo dia é um novo dia. E o objetivo é não fazer o que foi feito no dia anterior. Se torna uma espécie de jogo de xadrez solitário”, ilustra ele, criando com palavras uma imagem que poderia muito bem estar presente em algum de seus livros.
Arriscando-se a falar sem palavras sobre os avessos dos sentimentos e de quando o amor torna-se mágoa, De Gois não teme cair em lugares-comuns. “A melhor forma de jogar esse xadrez é buscar elementos sutis e não óbvios para descrever sentimentos que já possuem signos muito gastos ou tradicionais. Mas, às vezes, o óbvio ajuda também. Às vezes, falar o que todo mundo já sabe com outras palavras para parecer novidade. Não tem regras na arte. Reconheço que, às vezes, sou muito brega. E gosto disso”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 27 de dezembro de 2022.