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Dissecando ‘Da lama ao caos’: obra sobre o disco de estreia de Chico Science & Nação Zumbi chega às livrarias

publicado: 20/06/2022 09h39, última modificação: 20/06/2022 09h39
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Foto: Ciro Coelho/Estadão Conteúdo

por Joel Cavalcanti*

Do digital para o físico. De Recife para o mundo. No ano em que o movimento manguebeat completa 30 anos de lançamento do Manifesto Caranguejo com Cérebro, chega às prateleiras o livro que conta em detalhes histórias de bastidores da produção e idealização de Da lama ao caos, clássico álbum de estreia do grupo Chico Science & Nação Zumbi. De autoria do jornalista José Teles, paraibano radicado no Recife, Da lama ao caos: que som é esse que vem de Pernambuco? (Edições Sesc-SP, 136 páginas, R$ 40) faz o percurso incomum de, três anos após ser lançado em versão eletrônica, ser publicado em formato físico, a tempo de contextualizar os processos que levaram o disco a ser considerado por críticos como o mais importante da música brasileira nos últimos 40 anos.

“Modernizar o passado / É uma evolução musical”, assim começa o disco que colocou a capital de Pernambuco no epicentro da cena cultural dos anos 1990, aliando crítica social com uma mistura de ritmos que incluíam o rap, o rock, o trash metal, com maracatu e manifestações da cultura popular. Lançado pelo selo Chaos, da Sony Music, em 1994, com um show no Circo Voador, no RJ, o álbum produzido por Liminha foi um estopim para a reviravolta da MPB, que só havia se modernizado antes do manguebeat com a bossa nova e a tropicália. Para a obra lançada virtualmente em 2019, José Teles foi até o estúdio Nas Nuvens, considerado um dos melhores em acústica do Brasil, com o produtor e ex-Mutantes, então um dos mais requisitados do país. Lá, ele pode entender com profundidade a criatividade compulsiva de Francisco de Assis França, o Chico Science.

“Ele vai criando à medida que as gravações vão rolando, de acrescentar samples a usar frases aparentemente sem sentido como ‘Dona Maria, me dê um mói de coentro’. Liminha tocou faixas sem os instrumentos, e impressiona como Chico era afinado, sobretudo em ‘Risoflora’, que tem uma melodia complicada”, explica o jornalista com atuação em publicações como Correio de Pernambuco e Jornal do Commercio. É de Teles, ainda, a autoria de livros sobre o Quinteto Violado, Manezinho Araújo e Do frevo ao manguebeat.

Foi através desse encontro que Liminha pode esclarecer também as críticas que recebeu na época por ter, supostamente, captado mal as alfaias. “Os tons graves dos tambores funcionam mais no palco, com o visual. No estúdio, não são fortes assim. Ele gravou tambores com overdubs para dar maior potência”, justifica José Teles.

O livro também desfaz um mito que perdurou por décadas e que, com o passar do tempo, foi ganhando um véu de verdade absoluta, que seria a influência do escritor recifense Josué de Castro e suas obras Geografia da fome e Homens e caranguejos nas ideias de Chico Science. Parecia uma inferência coerente quando se ouve Chico Science cantando “Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça / Quanto mais miséria tem, / mais urubu ameaça”, se não fosse mentira. “Esta coisa da ligação de Chico e a obra de Josué de Castro é muita viagem. Chico nem sabia quem ele era até um dia em que foi à minha casa, com Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A, para mostrar a primeira fita demo que gravaram. Quando escutei, comentei sobre o livro Homens e caranguejos, romance de Josué. Fiz um resumo da história do livro. Chico pegou no ar, e já jogou numa letra, feita logo depois que foi embora”, esclarece Teles.

O jornalista lembra que, nessa época, Chico Science era empregado da Emprel, empresa de processamento de dados do Estado de Pernambuco, e que os livros de Josué de Castro estavam fora de catálogo. “Chico cantava o cotidiano dele e da cidade, sem influências nas letras. Tinha mais nos ritmos, que iam do funk – o verdadeiro –, rap, coco, embolada e várias manifestações da cultura popular pernambucana. Mas nada de Josué de Castro”, remonta José Teles, para quem o músico provavelmente havia até esquecido o sobrenome do escritor que incluiu na letra de ‘Da lama ao caos’, que nesse momento já estava com a composição quase finalizada. “A primeira vez que conversei com o Chico eu não vi muita coisa nele. Inclusive, achei ele meio simplório. Mas quando eu passei a ver a banda ao vivo, no comecinho, em 1991, eles estavam ajustando o som com a ONG Daruê Malungo. Quando eu comecei a ver que o negócio funcionava mesmo, que era diferente e inovador, foi em 1993, quando eles já estavam engrenados”.

Com o sucesso internacional do disco, Chico Science & Nação Zumbi mostrou ao pernambucano e a toda a cena regional que era possível fazer música em suas localidades. Esse processo desencadeou um movimento que não parou mais. José Teles não enxerga, porém, nenhum artista que descenda do estilo e da estética do manguebeat. “Não sei se tem alguém que faça ‘música mangue'. Na verdade, com algumas exceções, ‘música mangue’ só quem fazia mesmo era Chico Science. A Mundo Livre S/A tem uma ou outra que cita o manguebeat. A rigor, não há música manguebeat, que foi mais uma movimentação do que um movimento. Participei de uma conversa com estudantes do Ensino Fundamental, adolescentes. Quase ninguém sabia quem era Chico Science! Os 30 anos do mangue estão sendo lembrados pela data redonda, mas só voltará a se falar daqui há 10 anos”, sentencia o especialista.

Mesmo que a herança musical do manguebeat seja algo questionável, não há controvérsia que o disco Da lama ao caos foi um marco na música brasileira e que sua importância parece apenas ser cada vez mais reafirmada com o passar do tempo, e a obra de José Teles demonstra com um olhar curioso como isso foi construído. Mesmo desacreditado quando foi lançado e sem que as gravadoras da época sequer soubessem identificar direito o que era aquele som, Da lama ao caos trouxe algo totalmente novo, com um tipo de música que não existia no Brasil. “É uma música nova até hoje, na linguagem musical e na linguagem literária. Junto  com ‘Afrociberdelia’, são dois grandes discos dos anos 1990. Eles mudaram totalmente a música brasileira. É um marco feito muito na intuição”, finaliza José Teles.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 20 de junho de 2020.