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Diversidade do super-8

publicado: 14/05/2024 08h36, última modificação: 14/05/2024 08h37
Filmes de cena ‘queer’ paraibana nos anos 1980 serão exibidos em Nova York esta semana
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Cena de bastidores de ‘Era Vermelho o Seu Batom’, dirigido por Henrique Magalhães (no centro) | Foto: Bertrand Lira/ Divulgação

por Esmejoano Lincol*

Corpos masculinos nus trocam carícias enquanto caminham pelas areias da Praia de Cabo Branco, no entardecer da capital paraibana. Esta cena que parece ter sido captada ontem é um dos pontos altos do filme Closes, produzido em 1982 pelo então estudante de comunicação Pedro Nunes – hoje pesquisador e professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A vanguarda deste filme foi compartilhada com outros alunos da instituição, que produziram a chamada “onda de filmes queer em Super-8 na Paraíba” – queer, expressão utilizada para definir o leque de sexualidades chamadas “dissonantes” do comportamento heterossexual.  

Depois de passar por alguns festivais de cinema nacionais esses filmes serão exibidos na próxima sexta na mostra The Wave of Queer Cinema in Super-8 from Paraíba, organizada pelo centro americano de preservação cinematográfica Anthology Film Archives, de Nova York. A iniciativa integra a série Narrow Rooms, que exibirá, durante o ano de 2024, um conjunto de filmes com temática LGBTQIAPN+.

William Plotnick, curador da mostra e responsável pela recente restauração do material, e Bertrand Lira, diretor do curta-metragem documental Perequeté estarão na sessão. Bertrand também pretende reencontrar Francisco Marto, ator retratado em seu filme e que reside hoje nos EUA. Bertrand planeja produzir outro documentário sobre o artista, desta vez, abordando tudo o que ele viveu nas quatro décadas seguintes. 

Perequeté, 1981

O cineasta e fotógrafo Bertrand Lira está nos Estados Unidos para acompanhar a mostra | Foto: Rodrigo Barbosa/Divulgação

Cronologicamente, Pequereté foi o primeiro da onda de filmes queer a ser filmado, antes que o cineasta deixasse a Paraíba para realizar intercâmbio em uma universidade francesa. Acompanhamos o cotidiano de Marto enquanto professor de Educação Artística e nos seus trabalhos no teatro. O apelido de Perequeté “pegou” depois que ele interpretou um coelho com este nome, numa peça infantil.  

Bertrand relata que este e os outros filmes fizeram muito sucesso entre o público cineclubista da Paraíba, ao mesmo tempo que não passaram ilesos pelos olhos do Regime Militar. Uma das exibições públicas dos curtas, que não havia sido autorizada previamente pela censura, recebeu uma visita nada amigável da Polícia Federal. “Os agentes entraram na sala armados e com bombas de gás lacrimogêneo. Tivemos que fugir pelos fundos e esconder as latas dos filmes, com medo de serem apreendidos”, relembra. 

Closes, 1982

Numa mescla de ficção e relato documental, Closes tem direção de Pedro Nunes. Nos momentos em que o realizador encena a separação de um casal homoafetivo, a narração das cartas que são trocadas entre os amantes é feita pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos. A cena citada no início da matéria foi cercada por muitas dificuldades de produção. “Já tinha sido difícil coletar depoimentos para o filme, imagine o quanto foi complicado localizar atores que topassem fazer as cenas românticas. Uma pessoa ficou vigiando o set na barreira do Cabo Branco enquanto eu operava a câmera”, descreve Pedro.

Quando de seu lançamento, o filme ganhou uma página inteira em A União, com textos de Jomard Muniz de Brito e de Ary Maciel, além de um artigo escrito pelo próprio Pedro, no qual defendia o seu trabalho em Closes. “A tentativa neste filme é de inovar em linguagem cinematográfica, dando ritmo a uma cadência bem explosiva, que levará o espectador a tomar um posicionamento e pensar sobre ele”, escreveu Pedro na edição de 2 de maio de 1982. 

Miserere Nobis, 1982

O mais experimental dos filmes da mostra, Miserere Nobis (do latim, “tende piedade de nós”), foi dirigido pelo professor e ativista Lauro Nascimento. O filme traz uma figura sacra – que podemos identificar como sendo de Jesus Cristo – “recrutando” pessoas para participarem de uma ceia sagrada no final da projeção do curta. Um dos escolhidos é Jomard Muniz de Brito.

Depois de alguns anos trabalhando como docente do extinto curso de Educação Artística, Lauro deixou a Paraíba e perdeu contato com antigos colegas. A “dessacralização do sagrado”, como define Pedro Nunes, era a marca deste e de outros curtas que Lauro filmou em nosso estado.

Baltazar da Lomba, 1982

O martírio de Baltasar da Lomba (seu nome real era grafado com a letra “s”), paraibano preso pelo Tribunal da Santa Inquisição sob acusação de sodomia, nos idos de 1595, foi retratado em curta desenvolvido pelo coletivo Nós Também, em 1982. O nome do grupo era uma “resposta” ao Somos, outro coletivo que lutava pelos direitos dos indivíduos LGBTQIAPN+ – este fundado em São Paulo, no final da década de 1970. Aqui na Paraíba, o Nós Também era formado por Lauro Nascimento, Gabriel Bechara, Germana Galvão, Sandra, Augusto, “Lu”, e Henrique Magalhães.

Baltazar da Lomba conta com cenas filmadas na Igreja de São Francisco, onde o diretor ambienta as sequências da Inquisição. Na época, o convento estava em reforma e o coletivo gravou esta passagem de maneira sigilosa, sabendo que não teria autorização para rodar um curta com esta temática em um prédio da Igreja Católica. “Foi muito interessante fazermos a equipe aparecer em cena, mostrando como o filme foi feito”, rememora Henrique Magalhães. 

Era Vermelho o Seu Batom, 1983

Rodado durante carnaval na Baía da Traição, em meio à saída do bloco Virgens das Trincheiras, Era Vermelho o Seu Batom, também traz mescla de documentário e ficção. Na parte encenada do filme, um homem gay, interpretado pelo próprio Henrique, é rechaçado por seu amante, desiludindo-se com a rejeição. “Esse bloco de carnaval era composto por foliões do bairro das Trincheiras, em João Pessoa, que ia à Baía da Traição para se divertir. Foi fácil me camuflar de ‘virgem’ naquele grupo”, recorda Henrique.  

Em 2009, esses curtas passaram por um processo de telecinagem – transpostos da película de cinema para uma fita magnética – e o material foi lançado no box Cinema Adentro - Interiorização do Audiovisual na Paraíba, organizado pela Associação Brasileira de Documentaristas – Seccional Paraibana (AB D-PB) e pelo coletivo de cinema Viação. Em 2022, o pesquisador William Plotnick realizou a restauração citada, escaneando os negativos com tecnologia 2K, tratando também o áudio. “É muito interessante ver esses filmes com estas cópias. Conseguimos ver aspectos que acabaram passando batido quando filmamos ou que estavam apagados com a perda de cor do Super-8, que é uma mídia frágil”, comenta Henrique

Mais atenção ao cinema na PB

O americano Adam Baran, produtor cinematográfico e responsável pela série Narrow Rooms do Anthology Film Archives destaca a importância dessa produção: “No cenário global do cinema queer, certamente deveríamos prestar mais atenção ao seu país. Acho que alguns dos melhores filmes LGBTQIAPN+ feitos atualmente vêm do Brasil, como Três Tigres Tristes, de Gustavo Vinagre, e Seguindo Todos os Protocolos, de Fábio Leal, espiritualmente conectados com os filmes da Paraíba”.    

Através do link, acesse uma playlist com os curtas em super-8

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 14 maio de 2024.