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‘Aos Vivos’

Do compacto ao vinil de uma obra antológica

publicado: 26/12/2023 09h27, última modificação: 26/12/2023 09h27
Em entrevista exclusiva ao Jornal A União, Chico César relembra os perrengues e frustrações de não ter lançado originalmente o seu disco de estreia em LP, o que acontece agora
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Na época, gravadora queria lançar apenas em CD e o artista paraibano queria também em LP: “Eles estavam certos, mas eu fiquei frustrado mesmo assim” - Foto: Di Branco - Ato Press Estadão Conteúdo

por Joel Cavalcanti*

Um dos maiores álbuns da discografia nacional e responsável por colocar Chico César entre os grandes nomes da música brasileira foi moldado por suas várias limitações financeiras. Sem dinheiro para bancar um estúdio para fazer as coberturas de um disco, surgiu Aos Vivos, que precisou ser adaptado ao estilo voz e violão e gravado por equipamentos posicionados em uma Kombi que ficava estacionada na frente da pequena sala da Funarte, em São Paulo. O que resultou de tantas contingências foi um disco que misturou as origens do município de Catolé do Rocha e da cena alternativa paraibana à efervescência da vanguarda paulista da década de 1990. Quase 30 anos depois, a gravação original do disco antológico chega à sua versão em vinil, um sonho que Chico César vê realizar só agora.

“Quando a gravadora Velas, de Vito Martins e Ivan Lins, quiseram lançar o disco só em CD, eu confesso que fiquei um pouco frustrado. Eles falaram: ‘Rapaz, a sua música é moderna, o seu público é moderno e jovem. É um público que escuta CD, esse negócio de vinil está acabando, é mais para os artistas mais velhos’”, relembra Chico César, em entrevista exclusiva para o Jornal A União. Em 1995, quando o disco foi lançado, o formato do vinil estava, de fato, em declínio, mas Chico César tinha uma relação afetiva com o LP. É que ele havia trabalhado dos oito aos 15 anos de idade vendendo vinis na Loja Lunik, em Catolé do Rocha. “Eles estavam certos, mas eu fiquei frustrado mesmo assim”.

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Às vésperas de completar 30 anos, o primeiro disco de Chico César ganha a sua versão em vinil; o trabalho misturou as origens do município de Catolé do Rocha e da cena alternativa paraibana à efervescência da vanguarda paulista da década de 1990 - Imagem: Rocinante-Três Selos/Divulgação

Chico César não teve seu desejo de vinil atendido naquele momento, mas, quando ainda era gestor da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), recebeu da gravadora Biscoito Fino o convite para regravar Aos Vivos. Ele colocou como condição que fosse feito também um vinil da nova gravação, o que acabou sendo realizado. O que a Rocinante/Três Selos traz agora é uma reedição que conta com LP fumê 180g, capa empastada e envelope impresso com fotos, letras e texto do jornalista e escritor Bento Araujo. O lado “A” começa com ‘Béradêro’ e vai até a ‘A Prosa Impúrpura do Caicó’, e o “B” segue de ‘Saharienne’ a ‘Dança’. Passando por ‘Mama África’, tudo virou clássico ou hit de sucesso.

“Tenho um fetiche por esse objeto vinil. É uma escuta diferente, uma escuta mais descansada que possibilita uma leitura, abrir o encarte, ver as fotografias maiores, ler a ficha técnica, ler as letras. Tenho uma certa vaidade das letras, porque eu adorava ler as letras do Fernando Brant nos discos do Milton Nascimento, as letras nos discos das pessoas que eu gosto, do Luiz Melodia, do Macalé”, conta Chico César. Com Aos Vivos, ele posicionou seu álbum de estreia em uma estética muito influenciada pelo Jaguaribe Carne e suas parcerias com Paulo Ró e Pedro Osmar, que se estabelecia em um período pós-tropicalista e pré-mangue beat, com grooves e bits.

Justamente por ele ter esse formato mais básico de voz e violão, ouvir o álbum no vinil não é uma experiência que soe datada nem tenha envelhecido no tempo. “É curioso isso, nem tenho essa vaidade, porque ele é um disco precário por falta de dinheiro. Tive de adaptar tudo pro meu violão, em quatro semanas, talvez seis semanas. O fato é que nós temos uma tradição de voz e violão no Brasil, do violão brasileiro, que é muito forte, que vem de Baden, João Pernambuco, Gil, Garoto, João Bosco, Djavan, e o próprio Lenine, já mais da minha geração”, cita o paraibano, incluindo ainda a influência do disco Transa, de Caetano Veloso. “Vejo esse disco bem atual, e agora que ele saiu em vinil, me sinto muito feliz de não ter tido dinheiro naquele momento para bancar um disco de estúdio”.

‘Geleia Geral 90’

Aos Vivos serviu ainda para dar espaço a uma série de outros artistas da música que acompanhavam Chico César naquele momento, que morava há quase uma década em São Paulo, dividindo apartamento com Zeca Baleiro. Lenine, que participa nas faixas ‘Nato’ e ‘Dança’, topou sair de ônibus do Rio para ficar hospedado no mesmo apartamento, dormindo em um sofá de dois lugares. O álbum conta também com a guitarra de Lanny Gordin em duas músicas.

O disco tem ainda parcerias com Itamar Assumpção, ícone da vanguarda paulistana, em ‘Dúvida Cruel’; e parceria com Tata Fernandes – com quem Chico namorava na época – e Milton de Biasi, em ‘Templo’. Quem produz Aos Vivos é André Abujamra, autor de ‘Alma não tem cor’. Esse era um movimento que Chico César chamava de verdadeira ‘Geleia Geral’ naquela época. “Aos Vivos acabou dando visibilidade não apenas a mim, mas a uma geração de ‘cantautores’. Lenine já tinha lançado com Lula Queiroga Olho de Peixe, mas acho que Aos Vivos acabou chamando a atenção para nossa geração”, considera Chico César.

Ali, ele mostrava através do aboio com qual abriu o disco o caminho da vanguarda mergulhando na tradição da cultura popular e na sua história pessoal, com seu jeito próprio de escrever aos 30 anos. “Eu me sentia seguro com a minha escrita. Gostava de escrever essas coisas – ‘arcaico em meu peito catolaico’ – essa coisa de uma poesia que é gongórica, que tem uma sonoridade dentro dela, de inventar palavras. Ou ‘Amar dzaia soiê, dzaia dzaia, aí hinga dunrã’, refrão de ‘À primeira vista’, música de muito sucesso”. Foram essas composições que fizeram de Chico o preferido de intérpretes como Maria Bethânia, Zizi Possi, Daniela Mercury e Elba Ramalho, entre outras.

Depois de ficar mixando o álbum durante a Copa do Mundo de 1994 com Egídio Conde, dono do estúdio-Kombi e que Chico César considera o responsável pela existência de Aos Vivos, eles não podiam imaginar o sucesso que alcançariam. Depois que acabaram esse processo, precisaram ficar procurando uma gravadora que quisesse lançar o trabalho, algo que só aconteceria quase um ano depois. “A vida é sábia de colocar alguns limites em alguns momentos. Você tem as suas convicções, tem os seus desejos e a vida diz: ‘Agora não, agora não. Seu primeiro disco não vai ser de estúdio, você não tem dinheiro para isso, depois o seu primeiro disco não vai sair em vinil, vai sair em CD, e depois as coisas dão uma volta’. Acho bonito isso”, finaliza Chico César.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 24 de dezembro de 2023.