“Sou um homem simples, casado, cotidiano, tributável, só para me lembrar de um verso de um de meus mestres, Álvaro/Pessoa. Estou com 71 anos, e vejam que coisa estranha: publiquei mais de 70 livros. Tenho dezenas inéditos. De duas, uma: ou sou estúpido ou sou louco”. Entre fragmentos breves que se oferecem à leitura aleatória (o que abre este texto é um deles) e ensaios que percorrem a seara da crítica literária, o escritor, poeta e crítico literário Hildeberto Barbosa Filho entrega para o mundo mais dois novos livros: A sabedoria do esquecimento – Pensamentos Provisórios 2 (140 páginas, R$ 50) continua o movimento da seleção de pequenos ensaios postados pelo poeta em seu perfil do Facebook; e Forma e Beleza – Ensaios Literários (120 páginas, R$ 30), ambos pela Editora Ideia. O lançamento duplo ocorre amanhã, a partir das 10h, no salão de eventos da Ideia Editora, na Torre, com apresentação do jornalista paraibano Mário Hélio Gomes, fundador da revista Continente Multicultural.
A seleção de posts tomou forma de livro primeiro com Da Volúpia do Erro – Pensamentos Provisórios, publicado em 2023. Central à ideia empreendida é o pensamento entendido como algo que não se fixa, que não se torna doutrina.
“Escrevo sobre os diversos aspectos da vida, da existência, mas com uma articulação muito grande em torno das questões literárias, principalmente da poesia. São aforismos, raciocínios breves de um parágrafo só (que podem ter de uma a trinta linhas), tônica que imprimi do ponto de vista do estilo”, descreve Hildeberto. “O pensamento aparece ali como experiência, como lampejo. Nada que pretenda durar, nada que se pretenda definitivo”.
Refletivos fractais
Em A sabedoria do esquecimento, os temas são os mais diversos. A poesia e suas técnicas, a arte e a política, elucubrações filosóficas, questões do cotidiano, impressões poéticas acerca da vida ou meros registros factuais. Não obstante a formação do mestre, o hermetismo acadêmico é rigorosamente dispensado deste volume aforístico, que, em geral, equilibra a escrita mais desprendida do ensaio (mas não menos comprometida) e a prosa poética, por vezes atravessada por tom surreal.
- “Forma e Beleza” traz ensaios mais longos em comparação aos pequenos textos de “A sabedoria do esquecimento” | Imagens: Divulgação/Ideia
Segundo o escritor, o volume organiza-se como um “livro de passagens” que não exige sequência linear de leitura. “Sem começo, meio e fim. O leitor pode ler a partir do último, ou do meio. Cada fragmento pode ser lido isoladamente”, observa.
Por não marcar as datas dos textos, Hildeberto destaca o distanciamento do livro do gênero diário. Escritos em momentos distintos, com humores distintos, as reflexões procuram manter certa unidade no projeto (preocupação perene em outras obras do autor), evitando a aleatoriedade do fluxo escritural. A maneira com que escreve, o chamado estilo, é o que assegura o e pluribus unum de sua produção fractal, procurando privilegiar a função poética da linguagem, já que muitos de seus pensamentos são poemas proseados.
O autor destaca que a fragmentação não decorre de falta de coesão, mas de uma escolha estética: “Há um fio que os atravessa, embora não esteja exposto de modo linear. Quem ler o livro talvez perceba esse fio, mas ele não está dado previamente. A presença de um enunciador, que sou eu mesmo, também dá uma unidade, uma costura, não só do ponto de vista da técnica, como também do ponto de vista temático”, comenta o escritor, para quem autoras como a italiana Elena Ferrante e a espanhola Rosa Montero fazem trabalho semelhante a seus pensamentos provisórios, revitalizando gênero antigo.
“Acho tudo provisório. Eu sou aquele cara que não acredita em nada definitivo. Para mim o definitivo é um anticonceito, principalmente na cabeça da gente, porque a gente pensa, mas o pensamento não é uma coisa imóvel, fixa. Depois você faz o contrapensamento, já não está pensando igual, questionando o entorno existencial”, advoga Hildeberto, enquanto lembra da metáfora de Heráclito de Éfeso (540 a.C.-470 a.C.) acerca do constante fluir das coisas no mundo.
Ao longo de uma centena de fragmentos, o critério de seleção também não foi de ordem cronológica ou temática. Para tanto, Barbosa escolheu os textos que resistiram ao tempo, que ainda faziam sentido depois de algum esquecimento. Entre as referências que atravessam os textos, o autor cita Friedrich Nietzsche (1844-1900), Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Albert Camus (1913-1960).
“E, mais recentemente, um cara que me impactou muito foi o Emil Cioran (1911-1995). Me considero discípulo dessa linhagem de pensamento, que tem um lado questionador, crítico, autoirônico”, diz ele.
Do belo e suas formas
Enquanto A sabedoria do esquecimento apoia--se na descontinuidade, Forma e Beleza – Ensaios Literários reúne ensaios teóricos escritos a partir de anotações das aulas ministradas pelo autor como professor de teoria literária. A obra divide-se em três partes: a primeira aborda o fenômeno poético, a segunda trata do fenômeno da crítica e a terceira fração dá conta das relações entre a literatura e outros saberes, como jornalismo, biografia e até futebol.
“Não é um livro acadêmico, no sentido formal”, afirma o autor. “Não há citações em rodapé, nem bibliografia fechada. Mas há fundamentação. A presença de autores está ali, embora sem o aparato acadêmico tradicional”.
Forma e Beleza propõe pensar a literatura a partir de sua dimensão estética. “O próprio título indica isso: trata-se de refletir sobre a literatura como forma e como beleza, não como instrumento de ideologias. A literatura não precisa servir a nada além dela mesma”, considera. Os ensaios percorrem temas como a relação entre o impulso criador do poeta e a função do crítico, e sobre como a literatura se articula com campos vizinhos do conhecimento. “A ideia foi pensar a literatura como um fenômeno vivo, que se relaciona com o mundo, mas sem perder sua especificidade”, resume.
A publicação simultânea dos dois volumes não foi planejada desde o início, mas acabou se impondo durante o processo de preparação dos originais. Hildeberto conta que as obras foram sendo organizadas ao mesmo tempo, e em determinado momento ele percebeu que havia um contraste interessante entre ambas, passível de conectá-las a um mesmo evento.
“São livros diferentes entre si, mas que dialogam”, observa o autor. “Um trabalha com a brevidade e a dispersão; o outro, com a construção de argumentos mais longos. Mas ambos nascem de uma mesma necessidade de pensar a literatura. De um lado, a tentativa de pensar sem fixar; de outro, a tentativa de construir formas que sustentem a beleza”, analisa. Um próximo e futuro livro, de aforismos inéditos, ainda virá a lume, fechando a trilogia de suas reflexões fragmentárias.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de setembro de 2025.