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Do quintal de casa para o mundo

publicado: 01/07/2024 09h35, última modificação: 01/07/2024 09h35
A pessoense Veruschka Guerra ilustra “Contos e Lendas da América Latina” e fala de sua carreira nos mercados editoriais brasileiro e internacional
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“A noiva que veio dos céus” é uma das histórias do livro | Foto: Divulgação

por Esmejoano Lincol*

Foi com um muro e muitos lápis de cera que a pessoense Veruschka Guerra deu seus primeiros passos no ofício que a levou a ser ilustradora de diversos trabalhos editados no Brasil e em outros seis países. Cansado de ver sua casa rabiscada pela filha aspirante a artista, o pai de Veruschka reservou uma parede do quintal da casa da família para que a então menina pudesse exercitar sua veia artística. Depois de mais de uma década de carreira consolidada, neste mês de junho Veruschka estreia uma nova empreitada: os desenhos que compõem o livro Contos e Lendas da América Latina, de Alexandre Carvalho, editado pela Paulus.

Reconhecida hoje por seu portfólio no mercado editorial, ela teve atalhos e desvios naquele caminho do quintal de casa até as páginas dos livros. Mesmo que contasse com o incentivo dos pais, ela recorda a conversa que teve na adolescência com o pai. “Ele me disse: ‘Acredito que cada um precisa seguir seus sonhos, mas também se responsabilizar por seu sustento. Eu não serei eterno, então o que você for fazer, faça muito bem feito’”, rememora Veruschka. Com esse conselho em mente, rumou para as salas de aula: suas primeiras experiências profissionais foram como professora de educação artística, trabalho que manteve por mais de uma década paralelo à carreira como artista plástica.

A oportunidade para ilustrar um livro surgiu em 2008, com o convite da escritora Maria Valéria Rezende, que estava editando o infantojuvenil O Problema do Pato. O trabalho desenvolvido junto à autora santista que há quase 50 anos vive na Paraíba lhe abriu portas. Dois anos depois, seu portfólio chegou às mãos de Alexandre, hoje autor de Contos e Lendas da América Latina e, à época, editor infantojuvenil da Paulus. Encantado com os traços da artista, ele a convidou para ilustrar A Princesa, o Pássaro e a Sabedoria, de sua autoria.

A partir dos trabalhos seguintes realizados para a Paulus, a carreira deslanchou. Hoje são, ao todo, 52 obras ilustradas, sendo a maior parte infantojuvenis. Mas também há títulos religiosos e livros para colorir. “Trabalho também com agências nos Estados Unidos e na Inglaterra voltadas para o licenciamento de imagens com coleções para papelaria, cartões e principalmente quebra-cabeças”, enumera. Para a obtenção de seus desenhos, seu material “queridinho” é a pintura acrílica, mas ela também utiliza aquarela, guache, lápis de cores, nanquim, pintura digital, colagem e bordado. 

Lendas dos indígenas kaingangs e dos caraíbas estão no livro | Imagem: Divulgação/Paulus

A propósito do bordado, ela recorda que essa técnica surgiu em sua vida durante o processo de ilustração do livro A História de Nossa Senhora Aparecida, de Goretti Dias, editado durante a pandemia de covid-19, período em que seu pai também descobriu um câncer. “Foi um momento muito difícil para mim. Eu e minha mãe íamos acompanhá-lo na quimioterapia e nas internações. O bordado surgiu nesse momento como uma forma de acalmar meu coração. Eu pintava em casa e depois bordava as imagens no hospital”, declara a ilustradora, definindo o trabalho com as linhas e agulhas como uma “oração”.

Contos e Lendas da América Latina será lançado oficialmente na Bienal do Livro de São Paulo, em setembro. Ela conta que a pesquisa para as suas ilustrações foi extensa e complexa, a partir das visualidades pré-estabelecidas pelas narrativas, a exemplo do texto sobre o deus Quetzalcóatl, a serpente emplumada cuja lenda é difundida na América Central e na do Norte. “Nos personagens principais, eu trabalhei para que fossem quase realistas. Já a vegetação foi feita de forma mais alegórica e, em alguns trechos, também bordada. Isso reflete o colorido vívido e quente de nossa América”, detalhou.

Em meio às discussões em torno do uso de inteligência artificial (IA) para o desenvolvimento de ilustrações — estas baseadas em bancos de dados de artistas que “existem” — e o quanto isso pode impactar o seu mercado de trabalho, Veruschka assevera que esse é, infelizmente, um caminho sem volta. Mas a artista espera que mecanismos de segurança e de salvaguarda de direitos autorais possam ajudar os profissionais da área a ter um respiro no futuro. “Só há algo que a IA não conseguirá reproduzir: a alma humana. A nossa inventividade criativa é infinita e penso que chegará o dia em que, justamente por não ser uma imitação, produzir original, feito à mão, será muito mais valorizado”, projeta Veruschka.

CONTOS E LENDAS DA AMÉRICA LATINA
- De Alexandre Carvalho. Ilustrações: Veruschka Guerra. Editora: Paulus. Formato: 20,5 x 27,5 cm. R$ 135.

Tradição oral

Alexandre Carvalho é natural de Macaé, cidade fluminense, e nos diz que “lida com a palavra” há 20 anos, seguindo carreira como revisor, tradutor, editor e escritor. O livro ilustrado por Veruschka nasceu da influência de outro livro editado pela Paulus — Contos da América do Sul, de Thereza Cristina Stummer, publicado nos anos 1990. Alexandre também buscou auxílio na pesquisa historiográfica de Percília Souto.

Apesar disso, a obra bebe da tradição oral latina da chamada cosmogonia — como definimos as narrativas que dão conta da criação do universo e de suas criaturas. “Contos e lendas são materiais de domínio público, herança dos diversos povos originários. Essas narrativas ancestrais buscam explicar nossas origens, apontar para o que é justo e injusto e como lidar com as diversas situações da vida, com a morte”, exemplifica o autor.

Depois do primeiro encontro com Veruschka, em 2010, muitas outras parcerias foram estabelecidas. “Sem dúvida, a sensibilidade e a criatividade são traços surpreendentes e encantadores das ilustrações da Veruschka”, disse Alexandre, sobre a colega. Para o futuro, o autor projeta mais dois livros sobre narrativas cosmogônicas — um na visão dos povos originários brasileiros, outro sob o prisma dos povos africanos. “Que esses livros sejam publicados com ilustrações da Veruschka Guerra”, deseja Alexandre.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de junho de 2024.