O sol pode ser opressor para todos — ainda mais para uma albina. Quando pesquisava para a construção de seu novo longa, André Morais tomou ciência de que boa parte das pessoas com albinismo concentrava-se na África, filhas e filhos de mulheres negras. “Esse contraste pode parecer socialmente estranho, mas a natureza não tem estranheza. A natureza é”. Desenvolvendo a premissa, Malaika (12 anos, 85 min.) será exibido pela primeira vez em João Pessoa, gratuitamente, hoje, a partir das 18h, na Sala 9 do Cinépolis (Manaíra Shopping), em Manaíra. A estreia integra a Mostra Competitiva Sob o Céu Nordestino, do Fest Aruanda, que se encerra amanhã.
A provocação para o filme — que será debatido pelo diretor amanhã, às 10h, na Sala Bessa do Hotel Aram, em Tambaú — surgiu da exposição Albinos, do fotógrafo belo-horizontino Gustavo Lacerda. “Fiquei impactado com os corpos, com a pele, com o semblante e os olhares — os albinos têm a baixa visão, os olhos são diferentes. A partir daí, me sinto provocado a construir uma personagem desse lugar”, contextualiza.

- Uma história — de mãe e filha no Sertão — que trabalha com mistérios e lacunas | Foto: Saullo Dannylck/Divulgação
Pensou em uma adolescente, dado o conflito adicional da autodescoberta, e, de repente, viu-se enrascado. “Se eu não achasse essa adolescente, eu não tinha filme”, diz ele, que, logo em seguida, lançou uma convocatória na internet. “Recebi materiais lindos do país inteiro, mas tive a sorte de achar o vídeo mais lindo, o melhor material, de Vitória, em João Pessoa. Parece que o universo conspirou”.
André afirma que Vitória Bianco, mesmo sem ter experiência prévia com teatro ou cinema, chegou ao set de alma aberta para a arte. “Tudo se encaixou, tudo ganhou lugar. Parece que não poderia ser outra atriz”.
Três atos
Escrito e dirigido por Morais, Malaika conta um dia na vida dessa adolescente albina, filha de uma mulher negra (vivida por Norma Goés), em processo de transformação interna e ruptura externa que transcorre em meio a uma violência estrutural, tão opressora à persona quanto a estrela da manhã.
São três atos: a princípio, acompanhamos a jovem em sua rotina de aulas em uma escola católica do interior — com todos os dogmas e arcaísmos próprios a esse ambiente. A relação com a mãe toma o centro narrativo, descortinado em uma casa grande do interior — sua mãe trabalha nessa casa e ambas moram em um quarto anexo a uma fazenda, na qual tomam forma alguns eventos violentos, condizentes com o coronelismo local.
O ato final decorre nos preparativos de uma festa de casamento dos donos da casa — a antagonista, dona da casa grande, é interpretada pela artista da dança Joyce Barbosa. Entre atos, a violência promove sua escalada, marcada ainda pela presença fabular de um lobo.
Segundo longa do cineasta paraibano — o primeiro foi Rebento (2018) —, Malaika faz André perceber diálogo muito forte entre ambos. “Principalmente sobre esse lugar da fábula e da narrativa lacunar; uma narrativa que aposta nos mistérios dos personagens. São dois filmes de personagens muito fortes, nos quais a gente acompanha o cardíaco dessas personas”.
Fronteiriça, Malaika tensiona os limites de um contraste entre os binarismos masculino-feminimo, infância-adolescência, pele branca de albina e ascendência negra. Convidado a viver a solitude de Malaika, o espectador depara-se com um filme dotado de temporalidade peculiar, em suspensão.
“Diante desse momento que a gente vive, de informações tão rápidas, de um tempo tão acelerado no cotidiano, ele pede um tempo de acalmar e contemplar essa narrativa e chegar junto da personagem, respirar junto com ela”, explica o diretor. “É um outro lugar — nem todo espectador embarca. Depende muito do ritmo que você tá na vida e de como dispõe o seu olhar pra narrativa. É esquecer o celular e adentrar ”.
Biarritz
Até o momento, o filme teve duas estreias — “muito bonitas”, na opinião de André. “Sinto que, na minha trajetória no cinema, foi um salto muito importante”, ele completa.
Malaika encantou, primeiro, os franceses, no tradicional Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz. “Superacolhedor, que tem uma história com o cinema brasileiro. Pra mim foi muito importante estrear naquele espaço. É um festival muito aconchegante, íntimo”, destaca.
Kleber Mendonça Filho e o chileno Sebastián Lelio (diretor, entre outros, de A Mulher Fantástica, 2017) são alguns dos nomes que vêm fazendo a diferença no cinema latino-americano e que estavam lado a lado com o paraibano na França. Ter estado no lugar, levando junto mais de 120 artistas tabajaras, quer seja na frente ou atrás das câmeras, é motivo de orgulho para André.
“Agradeço ao universo por a gente ter conseguido conquistar e apresentar para um público 90% francês na plateia”, confessa, acrescentando a riqueza que foi ouvir as impressões devolutivas durante o debate pós-exibição, na transposição das diferenças entre latinos e europeus.
Segundo André, acharam o filme poético, mas estranho. Não por menos, para ele, tendo em vista a presença das lacunas modeladas nos termos da fábula.
E, durante a Mostra de Cinema de São Paulo, o filme, segundo de lavra paraibana a participar da mostra ao longo de 49 anos, não fez menos. “Estar também nessa tela é superimportante — acho um dos festivais mais importantes do país”, confirma. “Fizemos duas sessões e foi incrível. Mas sinto que agora a pré-estreia mais importante acontece aqui, em João Pessoa”.
O momento é celebrativo por acontecer com a presença de boa parte da equipe envolvida. Esta será a primeira vez que o longa é exibido na cidade natal de sua produção, muito embora a quase totalidade do filme tenha sido rodada no Sertão de Catolé do Rocha — a outra parte foi filmada em Conde.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 9 de dezembro de 2025.