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Ecossistema in vitro

publicado: 10/01/2024 09h13, última modificação: 10/01/2024 09h13
Amanhã, no Centro Cultural São Francisco, na capital, francês Damien Malard lançará exposição após residência artística no Litoral Sul de João Pessoa
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Depois de um período na Arapuca Arte Residência, no município de Conde, artista vindo de Paris produziu uma experiência imersiva que se equilibra entre o universo onírico e o da ficção científica - Foto: Helena Rodrigues/Divulgação
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Foto: Damien Malard/Divulgação
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Foto: Damien Malard/Divulgação
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Individual ‘L’avenir sera gazeux’ é formada por três instalações, cada uma combinando pinturas e esculturas produzidas a partir de rejeitos descartados nas praias do Litoral Sul paraibano - Foto: Damien Malard/Divulgação
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por Joel Cavalcanti*

Se os organismos da natureza pudessem incorporar os materiais tóxicos produzidos pelos homens em seus processos metabólicos, qual seria o futuro de nossa paisagem ambiental? A concepção do ecossistema como um laboratório de métodos de mutações com o inorgânico é uma das inspirações para o artista francês Damien Malard. Depois de realizar uma residência artística na Arapuca Arte Residência, no Conde, ele apresenta a exposição L’avenir sera gazeux (“O futuro será gasoso”, em tradução livre), que será aberta gratuitamente ao público a partir de amanhã e segue até o dia 12 de fevereiro no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa.

A criação de uma experiência imersiva que se equilibra entre o universo onírico e o da ficção científica é o que propõe a mostra formada por três instalações, cada uma combinando pinturas e esculturas produzidas a partir de rejeitos descartados nas praias do Litoral Sul paraibano. Uma hibridização que leva à emergência de espécies resilientes e únicas. “Esse conjunto da exposição fala de regeneração, de mutação, de adaptação, de como que a natureza reage a essa atividade humana e como ela não para também. Vem daí essa questão de erotismo na natureza, ligada à fertilidade, que era pra mim uma abertura muito grande pra dar uma imagem a essa regeneração”, destaca, em bom português, o artista que mora em Paris.

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Foto: Damien Malard/Divulgação

Para sua primeira exposição individual no Brasil, Malard projetou as instalações como um passeio dividido por vários tecidos e lonas em suspensão no teto, oferecendo um caminho de interação para o público. Os espaços compartimentados são divididos por suas porções luminosas. De início, uma luz branca que reflete a predominância de uma atmosfera de luz natural. Ao atravessar as três instalações, essa luz vai diminuindo até se tornar mais saturada e colorida. A artificialidade materializa o processo de mutação propondo uma visão poética de um futuro próximo.

“Essas ideias surgiram há mais de um ano, na verdade. Porque o Brasil sempre me influencia muito nesse processo criativo. Aqui eu encontro uma natureza tão exuberante que está de fato em conflito com muita modernização, sendo muito tóxico para a preservação desse Litoral”, conta ele sobre seu processo criativo. “Passeando nas praias da Paraíba, recolhendo materiais, comecei realmente a dar forma às coisas que eu queria. Fazia sentido usar esse material que é basicamente muito isopor e redes de pesca”.

A primeira instalação conta com peças como se fossem um recife artificial feito de plástico e de resíduos tóxicos. Na segunda instalação, sobre um banco de areia, estão duas esculturas moldadas com isopor cobertos por uma camada de resina de azul iluminados por um neon verde. “Nessa parte, está ainda misturada como uma coisa orgânica. Pode refletir uma flor, pode refletir uma fruta, mas são entidades naturais que viraram já hibridizadas e que estão ali vivendo no banco de areia. Daí tem essa curiosidade quando o espectador atravessa essa peça de se perguntar o que ela é”, diz o artista francês. “Eu gosto da palavra da ‘tecnonatureza’, que pra mim reflete muito uma referência da ficção científica. Reflete uma projeção numa natureza futurista”.

A terceira instalação está delimitada em uma área cercada com cortinas de tecido, tal qual um palco de teatro. Dentro, predomina uma luz vermelha e algumas esculturas em suspensão feitas de um tecido translúcido. “Todas essas partes estão em suspensão nesse palco pequeno e estão reagindo ao ventinho que o espectador vai deixar passando na frente. E lá tem um jogo de sombras que vai refletir nas cortinas. E aí tem também essa visão de fora que a gente vai ver, não vendo muito porque é translúcido, mas vendo um pouco, aí a gente descobre mais quando passa. Tem esse joguinho”.

O título da mostra é uma citação à obra de Bertrand Mandico, cineasta francês do curta The Last Cartoon, em que há um discurso que valoriza a questão da fertilidade da natureza. “Achei isso muito interessante para essa questão de regeneração que tem dentro da exposição. E influenciou, também, por ser um Litoral que ainda é pouco explorado, mas as praias são muito sujas de lixo plástico”. Formado na Escola Superior de Arte da Bretanha, na França, e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em Portugal, Damien Malard se inspira pelos fatores do Antropoceno, expandindo sua prática por produções que exploram a relação com o território.

Depois de João Pessoa, ele fará outra residência artística, em Buenos Aires, Argentina. Em abril, a exposição segue para a sua terra natal, Paris. Na Paraíba, ele pretende deixar uma mensagem de conscientização sobre as repercussões que o ser humano provoca na natureza, que age de forma indiferente ao homem. “Não quero moralizar. O meu papel nisso é só de fazer a ponte para o espectador entender melhor como as atividades dele impactam diretamente na natureza e como ela é uma entidade própria que vai também reagir a tudo que a gente vai fazer. Porque ela tem esse potencial de regeneração, de adaptação e vai seguir muito mais longe que a gente”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 10 de janeiro de 2024.