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Enfeitiçando a música brasileira

publicado: 16/09/2025 08h27, última modificação: 16/09/2025 08h27
Hermeto Pascoal deixa um legado perene de liberdade na criação musical
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O “bruxo” obteve respeito internacional com sua música cheia de improviso e magia | Foto: Reprodução/Facebook Hermeto Pascoal

por Esmejoano Lincol*

“As minhas coisas não são nada premeditadas, são coisas que vêm, sempre, do universo. E o universo, o que é? Quem é o dono dele? É o dono de todos nós: Deus”. Na última conversa que teve com A União, em junho de 2022, Hermeto Pascoal resumiu a pluralidade do seu processo criativo e a conexão dele com os mistérios que rondam o mundo. A entrevista concedida ao jornalista Guilherme Cabral foi realizada dias antes de o artista alagoano receber o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). De lá para cá, ele continuou produzindo. O trabalho presencial cessou no último sábado (13), com o seu falecimento, aos 89 anos, mas seu legado transcendental permanece.

A conexão de Hermeto com a Paraíba vai além do diploma concedido pela universidade. No fim da década de 1950, o “bruxo”, como foi apelidado em razão dos elementos “mágicos” que cercam sua trajetória na música, morou em João Pessoa e trabalhou na orquestra da Rádio Tabajara FM 105.5.

Os pesquisadores Fausto Borém e Fabiano Araújo, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), revelaram em artigo acadêmico publicado em 2010 que, a partir do contato com os colegas pessoenses, ele começou a compor com mais frequência peças autorais: “Construiu uma grande reputação na Paraíba, mesmo sem saber ler música”, aponta o texto.

A habilidade de fazer sons por meio de instrumentos não convencionais era uma de suas marcas. Panelas, lixeiras e bichinhos de borracha foram alguns dos objetos que ele utilizou, nos palcos, com esse fim. Mas foi em uma participação no programa Conversa com Bial, em 2018, que Hermeto falou sobre a gênese dessa habilidade.

Sua condição como albino não permitiu o trabalho na roça, empreitada assumida pelo restante da família. Os momentos “ociosos” na infância e na juventude ampliaram suas descobertas e experimentações com os sons da natureza: “Meus primeiros instrumentos não convencionais eram as coisas que eu achava no mato. O público eram os animais. Eu tocava no mato e os pássaros vinham me escutar”.

Depois daquela experiência na Rádio Tabajara e em outras emissoras nordestinas, Hermeto partiu para o Sudeste, onde começou a consolidar a figura que conhecemos. Nos anos 1960, ao lado de Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira, fundou o Quarteto Novo, grupo que tinha por inspiração elementos da cultura popular brasileira.

O primeiro disco solo de Hermeto, lançado por um selo americano independente e reeditado em vinil, no Brasil, há quatro anos | Foto: Reprodução

Essa empreitada findou junto com a década, mas a convite de Airto, o alagoano alçou voo ainda mais distante: transferiu-se para os Estados Unidos, estreitando laços com músicos locais, a exemplo de Miles Davis — com quem compôs duas canções. Seu primeiro disco solo chegou a público em 1970: Hermeto, com oito faixas e uma profusão de instrumentos, ilustrados na capa do álbum.

O prestígio aumentou junto à cena internacional, principalmente com o lançamento do LP Slave Mass, projeto cultuado pelos pares. Mas, no Brasil, as parcerias continuaram: em 1979, fez um show com Elis Regina no 13º Festival de Jazz de Montreux, na Suíça.

A partir do começo da década de 1980, Hermeto passou a apresentar-se com o Grupo, conjunto que, nesta última formação, é composto por André Marques (piano), Fábio Pascoal (seu filho, na percussão), Ajurinã Zwarg (bateria), Itiberê Zwarg (baixo e tuba), e Jota P. (sax e flauta). Foram eles que anunciaram a morte do “bruxo” após um show em Belo Horizonte. Encerraram a noite com um poema, atribuído ao artista: “Toquem, cantem, minha gente / Até o dia amanhecer”.

Personagem de cinema

No ano passado, o músico Uaná Barreto recebeu um convite do Instituto Piano Brasileiro para dar vida sonora ao Calendário do Som, projeto concebido por Hermeto Pascoal em meados dos anos 1990: compor uma música por dia como forma de homenagear todos os seres humanos do planeta. O paraibano ficou a cargo das 31 faixas do mês de janeiro.

“A gravação integral deste trabalho continua inexistente mesmo após quase 30 anos de sua produção. Aos poucos, estamos preenchendo esta lacuna. O álbum de janeiro foi eleito pela Billboard Brasil como um dos 50 melhores álbuns brasileiros do primeiro semestre. No dia 5 de outubro, será lançado o disco com as 29 músicas do mês de fevereiro”, antecipa.

Influenciado de maneira determinante pelo cancioneiro de Hermeto — sobretudo por sua liberdade criativa —, Uaná destaca que o artista natural de Lagoa da Cana foi o primeiro brasileiro a assumir uma linguagem de improvisação nos palcos e nos registros em estúdio, a partir de sua própria vivência e da influência do jazz, estreitada no período em que viveu nos EUA.

“Foi um precursor em várias vertentes. A sede de abraçar a música sem fronteiras estéticas e estilísticas é, para mim, o maior legado de Hermeto e o que mais me inspira. O mundo perde um artista sem precedentes na história, um dos mais criativos músicos de todos os tempos, mas que nos deixa uma obra imensa a ser celebrada e estudada”, sustenta.

Ao longo de 60 anos de carreira profissional, Hermeto foi personagem principal de documentários. No primeiro filme, o média--metragem Hermeto Campeão (Thomaz Farkas, 1981), ele compartilhou parte de seu processo criativo. Do segundo, Sinfonia do Alto Ribeira (Ricardo Lua, 1985), foram extraídas as sequências famosas em que o instrumentista se apresenta com o Grupo em uma caverna e submerso em um rio. 

A vida do músico virou história infantil em “O Menino Sinhô” | Imagem: Divulgação/Editora Ática

O título mais recente estreou neste ano: O Menino d’Olho d’Água, série de entrevistas e apresentações dirigida por Carolina Sá e Lírio Ferreira, que será exibido hoje, no canal Curta!, a partir das 16h30; com reprise amanhã, às 10h30. O documentário também está disponível na plataforma CurtaOn.

Carolina revela que, no primeiro semestre, antes do lançamento do filme na TV, encaminhou o arquivo do filme para a equipe do “bruxo”. Ela não tem certeza se Hermeto conseguiu ver o documentário, mas espera que, em caso afirmativo, o alagoano tenha gostado de se ver na tela. A realizadora partilha com A União um momento marcante das filmagens.

“Ele e eu tiramos os óculos. Eu sou míope e ele não enxerga bem sem as lentes. Não nos víamos, mas sentíamos que estávamos ali. Foi uma conversa muito profunda, que permeou o documentário. Pode ser uma coisa meio boba de se falar, mas o que me vinha na cabeça era uma presença muito forte, de uma pessoa muito inteira com ela mesma”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de setembro de 2025.