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Enigma que persiste

publicado: 12/09/2025 08h58, última modificação: 12/09/2025 08h58
O cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré completa hoje 90 anos; apesar de ter voltado à Paraíba em anos recentes, sua reclusão mantém viva sua aura de mistério
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Vandré na capa do disco de 1979, que inclui seu grande clássico | Foto: Reprodução

por Daniel Abath*

“Ele não atende”, advertiu o cineasta Lúcio Vilar a este repórter quando perguntado sobre o cantor e compositor Geraldo Vandré. De fato, o paraibano que, hoje, completa 90 anos de idade, não se fez acessível, confirmando a fama de alguém que fez história na era de ouro dos festivais, mas que “desapareceu” do mundo artístico depois do exílio no Chile. Cantor de protesto? Torturado? Recluso? Em conversa com A União, escritores, pesquisadores e jornalistas lançam luz sobre o enigma Vandré.

Há 10 anos, o jornalista paulistano Vitor Nuzzi publicava Geraldo Vandré - Uma Canção Interrompida (editora Kuarup, 352 páginas), fruto de buscas pelo artista “desaparecido”, que se iniciaram em 1985. De acordo com Nuzzi — em texto escrito para o jornalista paraibano Ricardo Anísio (1959-2023), que também aborda o ídolo Vandré em seu MPB de A a Z (Editora Ideia, 296 páginas) —, exceto por um recital de um pianista, em São Paulo, e algumas apresentações no Paraguai, na década de 1980, Geraldo Vandré sumira do radar, pelo menos dos meios culturais de massa e eventos correlatos. Até 2015. 

Vandré entre Lima Duarte e Vladimir Carvalho no Fest Aruanda de 2015 | Foto: Marcos Russo/Arquivo A União

“Que privilégio foi ouvi-lo cantar em João Pessoa, em 2015”, diz Vitor, referindo-se à data em que Vandré voltou à capital, como convidado da 10a edição do Fest Aruanda, ocasião em que recebeu o Troféu Aruanda de Contribuição ao Cinema Nacional, por musicar Guimarães Rosa na trilha sonora do longa A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1966). Depois, nos dias 22 e 23 de março de 2018, após quase 50 anos nos bastidores, fez esgotar, em míseros 15 minutos, cerca de mil ingressos para o concerto-recital Música e Poesia da Capitania de Wanmar, na Sala de Concertos Maestro José Siqueira, do Espaço Cultural. Ele também seria homenageado pelo Aruanda em 2023.

“Como um clássico dos anos 1960, a trilha de A Hora e a Vez de Augusto Matraga ter sido assinada por ele, redimensionou a densidade dramática da película. Veja que 40 anos depois, Kleber Mendonça (Filho) embalou a narrativa de Bacurau com uma das composições mais emblemáticas da época. Por tudo isso é que se reconhece essa saudável relação do cantor e compositor com a sétima arte, uma química que deu muito certo”, afirma Lúcio Vilar, coordenador do Fest Aruanda, adiantando que a edição de 2025 do festival celebrará os 90 anos do músico. “Já estava tudo de caso pensado, iríamos homenagear e celebrar os 90 anos dele e de Vladimir Carvalho, esse ano. Infelizmente, o conterrâneo velho de guerra partiu antes da hora”.

Vitor Nuzzi afirma que quando decidiu escrever seu livro, em 2005, Vandré foi a primeira pessoa que procurou. “Tentei falar com ele várias vezes, até que um dia recebi a resposta: ‘Se eu quisesse um livro sobre Geraldo Vandré, eu mesmo escreveria’. Tentei driblar essa dificuldade ouvindo o maior número possível de pessoas, entre amigos, pessoas próximas, parceiros, jornalistas”, ele conta.

O jornalista Célio Albuquerque advoga que 1979 foi um ano-chave para a música brasileira. Organizando o temático 1979 - O Ano que Ressignificou a MPB (Editora Garota FM Books, 2022, 576 páginas), Célio convidou 50 especialistas em música a comentarem 100 LPs que marcaram aquele ano, dentre os quais o paraibano André Cananéa (jornalista e atual gerente-executivo de Arte e Cultura da Parahyba FM), que analisou em texto o disco Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (1979). Mesmo sem ser um fã que soubesse as letras de cor, André topou o desafio, mergulhando em biografias e jornais da época.

“Eu até falo no texto que esse disco é um museu de apenas uma novidade”, destaca André, atentando que o álbum foi, na verdade, um relançamento do disco Cinco Anos de Canção (1966) pela Discos Som/Maior, acrescido da canção-título (lançada em 1968, proibida pela Ditadura Militar, e só liberada em 1979). “Alguns trechos da música mexeram muito com os militares na época. O general Octávio Costa, de Alagoas, queria ressaltar que havia uma injustiça cometida por Geraldo Vandré contra os militares”. Vandré negava as acusações, definindo-se, conforme Nuzzi, como mero observador, ou “cronista da realidade”.

Em menos de 72 horas, após o texto do general, determinou-se que o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) saísse à caça da música, considerada subversiva, em todo o território nacional. Toda a confusão se deu em outubro. Em dezembro de 1968, entrava em vigor o famigerado AI-5 (Ato Institucional no 5), cerceando-se ainda mais os direitos civis, o que fez com que Vandré se escondesse até fevereiro de 1969, quando partiu para o exílio por países da América Latina e Europa.

“A música havia sido lançada em compacto, ficou proibida por mais de 10 anos (só liberada em 1979) e a gravadora preferiu relançar o Cinco Anos de Canção, com a versão ao vivo do festival e uma nova versão de estúdio, na volta de Vandré para o Brasil, com uma masterização e mixagem mais profissional”, explica Cananéa.

Entre outros mitos que permeiam Geraldo Vandré, diz-se que teria sido torturado durante o período. “Tem uma parte muito obscura para mim da história de Vandré — até onde começa o delírio e termina a verdade, e vice-versa”, diz André, ao que Vitor Nuzzi responde: “Nunca foi torturado [fisicamente] — ser obrigado a ficar mais de quatro anos fora do país já é uma violência”.

“Cada um tem sua interpretação. Talvez ele tenha considerado que não havia mais o que falar [ou cantar], talvez receasse ser mal interpretado. Mas às vezes o silêncio foi quebrado”, relativiza Nuzzi sobre a conduta reclusa do músico. “Me parece que os episódios que decorreram dessa caça à bruxa chamada Vandré é que enterraram a carreira dele. Você não tem coisas lançadas após esse período. O advogado Geraldo Pedrosa escolheu ‘matar’ o artista”, afirma Cananéa.

Como se não bastasse, Vandré chegou a lançar pela Editora A União seu livro Poética, com poemas escritos durante o exílio no Chile — a princípio intitulado Cantos Intermediários de Benvirá. O crítico literário Hildeberto Barbosa Filho, que apresentou a obra quando de seu lançamento na capital, em 2018, atesta o caráter panfletário dos escritos. “Talvez associado a uma melodia, transformando em uma letra, a coisa mudasse. Poema e letra de música são coisas diferentes”, analisa o crítico, elogiando a poeticidade datada da música de Vandré.

Primogênito de José Vandregísilo e Maria Eugênia, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias nasceu na capital paraibana, aos 12 dias do setembro de 1935. Com 14 anos de idade, já cantava em um programa de calouros da Rádio Tabajara, mas o ano de 1951, quando se mudou com a família para o Rio de Janeiro, seria determinante para o rumo artístico que tomaria sua vida.

Representou a Paraíba em vários festivais, a princípio, com o nome artístico de Carlos Dias (Carlos vinha dos ídolos Carlos Galhardo e Carlos José) — Vandré chegou depois, em abreviação do segundo prenome do pai. Fora os compactos, Geraldo Vandré lançou no mundo cinco LPs: Geraldo Vandré (1964), Hora de Lutar (1965), Cinco Anos de Canção (1966), Canto Geral (1967) e Terras de Benvirá (1973) — esse último gravado na França, com o Quinteto Violado em 1970, e somente lançado no Brasil três anos depois.

“Tem gente que acha que Vandré só fez duas músicas, ‘Caminhando’ e ‘Disparada’. Isso desmerece o trabalho do compositor, que deixou dezenas [identifiquei em torno de 80, mas certamente existem mais] de canções. É preciso ouvir Vandré. Que bom vê-lo chegar aos 90”, afirma Vitor Nuzzi, ao que Lúcio Vilar conclui: “A verdade é que a Paraíba não pode deixar passar em brancas nuvens uma efeméride dessa grandeza”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de setembro de 2025.