William Costa
Então é Natal. Nos corações de milhões de pessoas, espalhadas pelo mundo, pulsa a esperança de um mundo melhor, embora quase não se perceba os contornos dessa fé, em meio a tantos sentimentos, majoritariamente negativos, entulhados no peito de tanta gente. Dezembro é assim, meio inverno, meio verão, mais para um que para o outro, dividido, como as pessoas.
Em milhões de lares cristãos e não cristãos, no Brasil e em outros países, este domingo é preguiçosamente fraterno, porém, é também dolorido, enjoado e cansado. O mal-estar é consequência das idas e vindas ao comércio - para as compras relacionadas à época -, consumo de bebidas alcoólicas e degustação de pratos gordurosos típicos das pantagruélicas ceias natalinas.
O fígado registra um superávit de óleo e álcool, afinal, foram muitas confraternizações com amigos e colegas de trabalho, até o grande encontro familiar, arquitetado com astúcia e paciência, para não ferir suscetibilidades. Em alguns casos, foram engolidos mais sapos que perus e aquelas outras espécies de aves temperadas não catalogadas por Darwin.
As disparidades na fatura do cartão de crédito, cuja primeira parcela será cobrada em janeiro, refletem não só a desigualdade econômica que divide a humanidade em três classes básicas – ricos, pobres e miseráveis -, como também o real significado do Natal, para milhares de pessoas: é tempo de gastar dinheiro; satisfazer o desejo de consumo, reprimido ao longo do ano.
As igrejas nem tanto, mas as lojas de departamento lembram imensos formigueiros, quando a turba de insetos está adivinhando chuva. Isso é cinema: tanta gente subindo e descendo nas escadas rolantes, equilibrando pacotes e gritando “cuidado com o degrau”, para alertar, do perigo, meninos e meninas, empanturrados de pizza, de chocolate e refrigerante.
O nascimento do menino Jesus é celebrado em lares que parecem resistir apenas para confirmar a regra. O mundo continua o mesmo. Na sala iluminada por castiçais de ouro, a tradicional família parisiense saboreia refinados pratos servidos pelo ‘chef’ famoso. Do outro lado do Atlântico, a comadre não fez a ceia porque a palavra ainda não existe nem cai água das torneiras.
Ao contrário das pessoas, o mundo está cada vez mais quente. A neve não é mais eterna no Everest, e o comércio de sal rosa está empalidecendo o Himalaia. Mais de 60 milhões de pessoas estão deslocadas de suas aldeias e vagam pelo mundo à mercê da mesquinhez de sua espécie. Quantos soldados e civis dispararam armas e acertaram o alvo, nas poucas horas da noite feliz?
Como foi a ceia natalina nos presídios abarrotados de homens e mulheres despidos de humanidade? E nas unidades de tratamento intensivo, houve confraternização com os doentes terminais? Muitas riquezas e seus respectivos donos estiveram sob os olhares atentos de vigilantes, cuja confraternização, com familiares e amigos, aconteceu via aparelhos de telefonia celular.
Matas e florestas estão cada vez mais devastadas e distantes, portanto, são de tudo, menos de madeira, as árvores de Natal, cujas luzes cintilam dentro das casas. Ainda assim as coisas vão bem nesses lugares. Há cidades onde não só não existem mais árvores de pé, próximas ou afastadas, como quase todas as casas e edifícios vieram abaixo depois que as bombas caíram.
Se em algumas cidades a luta que se trava dentro dos lares é pelas coxas do peru, em outras os cômodos das casas são conquistados em sangrentas batalhas, com irmãos em armas matando-se em nome de Deus. Piscam luzinhas coloridas em muros, janelas e jardins. O Ocidente está em festa. Metro e meio depois do meio do mundo, a noite explode em mil pedaços iluminados.
Mesmo que o mito surgisse em carne, osso e barbas brancas, vestido com o seu inconfundível pijama vermelho, seria muito difícil encontrar Papai Noel no meio de tantos policiais que, em Nova Iorque, Londres, Paris, Roma, Berlim etc. etc., mantêm-se em estado de alerta máximo. Afinal, se a guerra é santa, a data é propícia para confraternizações do tipo “o-homem-bomba-explodiu”.
Enfim, é Natal. Embora uma parte do mundo não concorde, existe outra que acredita que foi neste dia, há dois mil e dezesseis anos, que nasceu o menino Jesus, cuja vinda ao mundo fez com que o Pai Todo-Poderoso redimisse os pecados da humanidade, atendendo ao último pedido do Filho. E as duas partes haverão de concordar que é de paz e amor que o mundo carece.
Em verdade, não importa o quanto se comprou e comeu, nesse, nem quanto se comerá e comprará nos futuros natais; talvez nem mesmo se se tem ou não fé em Deus. O fundamental é não economizar nas palavras de afeto e nos gestos de solidariedade; nos esforços diários no sentido de construção de um mundo diferente, onde a justiça e a liberdade imperem de fato e de direito.
Mêncio garante que o homem tem a tendência natural para o bem. Não nos desvirtuemos do caminho, como alerta Lao-tzu. Sejamos brâmanes, livrando-se da raiva, do ódio, do orgulho, da hipocrisia. Amemo-nos uns aos outros, como Jesus nos tem amado. E, contrariando a belíssima canção de Lenine, não queiramos ficar de lado apenas de quem nos interessa.