Este repórter estreou no jornalismo — ainda como estagiário — entrevistando o escritor e compositor carioca Antônio Cícero, morto ontem, na Suíça, aos 79 anos, mediante procedimento de eutanásia. O “foca”, como são chamados os jornalistas iniciantes, pensou em muitas perguntas para o poeta, de quem já era fã, mas optou por iniciar a conversa com a questão mais simples, que inquietava o então estudante — qual música, dentre tantas faixas com que contribuiu, era a sua predileta? O solícito Antônio respondeu que “Virgem”, gravada por sua irmã, Marina Lima (que também assina a autoria), para o disco de mesmo nome em 1987, era a mais querida.
Na letra citada, os artistas imortalizaram paisagens conhecidas da capital fluminense, dentre eles o Hotel Marina e o Morro Dois Irmãos, testemunhas do desapego do eu lírico. Foi Marina, justamente, quem tornou o trabalho do irmão célebre, quando decidiu musicar seus poemas desde o seu primeiro LP — A Chave do Mundo, de 1979. O próprio Antônio também era um imortal, como suas imagens: ocupava a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL), cujo fundador era o escritor pernambucano Joaquim Nabuco, reconhecimento de suas contribuições para a MPB e das publicações que coletavam seus poemas (a exemplo de Guardar, de 1996) e seus ensaios (como em O Mundo Desde o Fim, de 1995).
Formado em Filosofia, iniciou sua graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), mas teve de concluir os estudos em Londres — o exílio em terras inglesas, a partir de 1969, veio como resposta à repressão do Regime Militar, que iniciava seus anos de chumbo. Já formado e conhecido, nos anos 1990, voltou ao âmbito acadêmico para coordenar, na Universidade Federal Fluminense (UFF), os cursos de Estética e Teoria da Arte. Na mesma época, idealizou, junto do colega compositor Wally Salomão, o projeto Banco Nacional de Ideias, que promovia palestras com filósofos e intelectuais conhecidos nacional e internacionalmente.
Portador de Alzheimer há anos e enfrentando a fase crítica da doença, decidiu radicar-se Suíça, onde buscou eutanásia — nesse país, o suicídio assistido é permitido. Não foram revelados detalhes do processo, mas Antônio deixou uma carta, redigida em um momento de lucidez, explicando os motivos pelos quais procurou pelo procedimento. “Exceto os amigos mais íntimos, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo”, pontuou. Ele finaliza o documento asseverando que gostaria de “morrer com dignidade”.
Colegas próximos, como o jornalista Nelson Motta e o cantor Nico Rezende, manifestaram-se com pesar pela perda do letrista de sucessos da nossa música popular, como “Fullgás”, “À francesa” e “O último romântico”. Já Marina Lima foi discreta ao falar do irmão — postou em seu Instagram apenas uma imagem de luto em um fundo branco, sem legendas, mas com um emoji de estrelas entre as datas de nascimento e morte do artista. Citando versos da música “Virgem”, Antônio Cícero partiu para buscar “por outros olhos e armadilhas”, sob o brilho do Farol da Ilha Rasa.
Playlist: cinco canções de Antônio Cícero
- “Fullgás” (com Marina Lima) Fullgás, Marina Lima (1984)
- “Pelos ares” (com Adriana Calcanhotto) Cantada, Adriana Calcanhotto (2002)
- “Sábios costumam mentir” (com João Bosco e Waly Salomão) Zona de Fronteira, João Bosco (1991)
- “O lado quente do ser” (com Marina Lima) Talismã, Maria Bethânia (1980)
- “O último romântico” (com Lulu Santos e Sergio Souza) Tudo Azul, Lulu Santos (1984)
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*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 24 de outubro de 2024.