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Entre a ternura e a dureza

publicado: 19/09/2023 09h10, última modificação: 19/09/2023 09h10
Companheiros de profissão e artistas falam sobre o legado deixado pelo escritor e crítico musical Ricardo Anísio
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Com destaque no cenário da música paraibana como crítico e produtor, o poeta e escritor Ricardo Anísio partiu no último domingo (17), aos 64 anos de idade - Foto: Antonio David Diniz/Divulgação

por Guilherme Cabral*

Amigos e artistas lamentaram a morte, aos 64 anos de idade, do jornalista, escritor e crítico musical Ricardo Anísio, que ocorreu no último domingo (dia 17), em João Pessoa, além de destacar a sua importância para a cultura local.

“O legado é de que o talento existe e a arte não tem fronteira, pois ele atuou em diversas áreas. É uma perda para a nossa cultura, que trouxe um perpétuo silêncio”, afirmou o poeta Jessier Quirino. “Tenho alguns textos de sua autoria sobre o meu trabalho, o que muito enobrece a minha trajetória. Ele era uma referência na pesquisa e no estudo, com capacidade de analisar e até polemizar, em alguns assuntos, e fiz a ponte para que lançasse um livro pelas Edições Bagaço, de Recife”, disse ele, que também assina o prefácio de Forró de Cabo a Rabo, publicada por Anísio pela mesma editora.

A cantora e compositora Cátia de França, abalada com o fato, confessou que Ricardo Anísio é “um nome imprescindível na minha história”. Ela informou que deverá ser tema de um documentário e garantiu que fará questão de que na obra sejam citados os nomes de Ricardo Anísio, Carlos Aranha e o Maestro Chiquito como importantes na sua carreira. “É uma tristeza, mas, quem é espírita, sabe que ele deixou essa vivência. Ele carregava uma cruz pelo não reconhecimento como escritor, saindo atrás de editoras e editais para publicar seus livros, pois como jornalista foi um dos maiores que tivemos. Pedi ao meu músico Cristiano Oliveira para anunciá-lo para as novas gerações. Além de produtor, era meu amigo e confidente”, disse ela.

“Que ninguém se esqueça desse intelectual paraibano que aliava, indissoluvelmente, competência e polêmica”, comentou a escritora e artista plástica Mercedes Cavalcanti, a Pepita. “Criei ilustrações e prefácios para seus livros de poemas. Era grande a admiração por esse talentoso profissional de comportamento rebelde e alma de artista. Entre suas produções, destaque especial foi MPB de A a Z. Entretanto, é fundamental sublinhar o restante de sua obra, qual seja Forró de Cabo a Rabo, bem como Canção do Caos, Simulacro, Canção do Abismo, Florilégio, Equiláteros, Crônicas Musicais e Em Cada Canto um Verso. Ostentando fama de brabo nos posicionamentos ideológicos, a sua alma se derretia ante qualquer emoção”, relembrou Pepita.

"Ele carregava uma cruz pelo não reconhecimento como escritor, saindo atrás de editoras e editais para publicar seus livros, pois como jornalista foi um dos maiores que tivemos." Cátia de França

O professor e jornalista Carmélio Reynaldo também falou sobre sua convivência com o amigo. “Tive parcerias na área musical com Ricardo Anísio em duas ocasiões. Da primeira, participou também o músico Washington Espínola, de quem tomamos emprestado o nome de uma composição para criar a produtora Poslúdio. Produzimos dois shows de jazz: do baterista Jack DeJohnette e do trio Oregon. Desistimos de continuar porque as demandas antes, durante e depois das apresentações eram tantas que nos impediam de desfrutar daquilo que não pretendíamos perder”.

Já na produção de discos, a parceria Anísio e Reynaldo resultou “em pelo menos três discos seminais para a nova cena musical paraibana: Avatar, de Cátia de França; Um Abraço pra Ti, Pequenina, de Xangai e Quinteto da Paraíba; e Balaio, do grupo Dasbandas da Paraíba”, elencou Carmélio Reynaldo. “Foram lançados com o selo Acácia, que tinha também na parceria Adilson Araújo. O projeto não foi adiante porque éramos dois idealistas em constante conflito com um empresário do ramo de discos que tinha metas conflitantes com nossas visões”, justificou ele.

O cantor e violeiro baiano Xangai assim se expressou a perda: “Lamentosa perda. A música brasileira se despede de um dos maiores espadachins. Defensor contumaz/esteta guardião da realeza arte brasilerança”.

“Ricardo Anísio era meu amigo de fé, me entendia e nos queríamos muito bem”, disse o cantador, poeta e repentista Oliveira de Panelas. “Há vários anos, ele escreveu o prefácio do meu penúltimo livro, Cintilâncias, contendo 365 sonetos sobre vários temas, um para cada dia do ano, que só terminei publicando em 2016. Sua morte deixa uma lacuna, pois seu trabalho se caracterizava pela sinceridade, coragem e, por isso, era verdadeiro e às vezes, polêmico. Mas era polêmico, alicerçado na sua coerência, e também polivalente, por atuar em várias áreas da cultura. Ele tinha confiança em si para vencer as barreiras da vida”, disse o artista.

O professor e produtor cultural Bira Delgado disse que Anísio “tinha um poder grande na caneta, por ter a coragem de, se fosse necessário, sugerir, em suas críticas musicais, melhorias no trabalho de algum artista. Quando conheci Ricardo Anísio, através de William Costa, na redação do jornal O Norte, me apaixonei pelo seu estilo de vida, a sua maneira de se expressar e pelo desapego às coisas materiais. No final de tarde, ele costumava reunir artistas de viés ideológicos diferentes para conversar e, na hora, ficava calado, só observando o diálogo, como se tivesse prazer”, contou ele. “Na época do show O Grande Encontro, que reunia Elomar, Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo, Ricardo conseguiu levar Sivuca, que já estava quase fora do ofício, e a sanfona para o Teatro Paulo Pontes. Na ocasião, sem saber, Sivuca foi convidado a ir ao palco e tocou. Ricardo Anísio era provocativo”, contou ele.

"Ricardo escreveu um artigo dizendo porque não votava num candidato. Este ganhou a eleição, e o jornalista nunca mais conseguiu se reinserir no mercado de trabalho. Perseguição política? Não vou afirmar que isso ocorreu, mas é possível que sim." Sílvio Osias 

Bira Delgado ainda lembrou de outro episódio: “Em 2011, por propositura do vereador Ubirantan Pereira, Ricardo Anísio recebeu a Medalha Ariano Suassuna conferida pela Câmara Municipal de João Pessoa por relevantes serviços prestados à cultura. Ricardo teve a vaidade de receber essa medalha das mãos do próprio Ariano, entregue na sede do Sindicato dos Bancários da Paraíba, na capital. ‘Faça, pelo menos, esse gosto para mim’, me pediu Ricardo. E eu, por conhecer Ariano e sua família, fui falar com Ariano, em Recife, para saber se poderia fazer a entrega da medalha. Eu achava impossível Ariano vir, porque ele era secretário de Cultura do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, além de estar com agenda cheia, por causa das aulas espetáculos que realizava pelo país. Para minha surpresa, Ariano aceitou o convite e entregou a medalha. O legado de Ricardo Anísio é grandioso, pela sinceridade de falar para artistas, através de sua escrita, aquilo que outros não faziam, por receio de desagradar”, comentou o produtor cultural.

No entender do jornalista e crítico musical Sílvio Osias, “a morte de Ricardo Anísio é perda geracional. Como foram perdas geracionais as mortes de Walter Galvão, em 2021, de Gil Sabino, em 2022, e de Juca Pontes, em agora de 2023. Convergindo ou divergindo, nós quatro atuamos nas mesmas trincheiras do jornalismo cultural a partir da década de 1970. Ricardo tinha somente dois meses a mais do que eu”. Osias observou que Ricardo Anísio não conseguiu gerir várias perdas, inclusive a primeira, do próprio pai, Seu Rodrigo. “Houve também a ‘morte’ profissional. Ricardo escreveu um artigo dizendo porque não votava num candidato. Este ganhou a eleição, e o jornalista nunca mais conseguiu se reinserir no mercado de trabalho. Perseguição política? Não vou afirmar que isso ocorreu, mas é possível que sim”, disse o jornalista.

Sílvio Osias lembrou que ambos trabalharam juntos, entre 2009 e 2010, em A União. “Eu era o editor do jornal, Ricardo atuava na Editoria de Cultura. À época, passamos a frequentar a Livraria Cultura, no Recife. Nós dois, Juca Pontes e Lauriston Pinheiro, que era o homem do marketing da Rede Paraíba – programa que se repetiu até 2015, quando a livraria entrou em decadência e a memória de Ricardo já estava muito comprometida. Nossos últimos encontros foram na Livraria Leitura, em João Pessoa. Como jornalista, Ricardo Anísio se destacou fazendo crítica musical. Era muito respeitado pelos leitores que concordavam com a defesa que, sob uma ótica nacionalista, fazia da música popular brasileira. Em sua coluna, não poupava a bossa nova, Tom Jobim e Caetano Veloso. Na intimidade, não escondia que gostava de rock e tinha profunda admiração por Bob Dylan”, disse Osias.

A escritora Marília Arnaud conheceu primeiramente o texto jornalístico de Ricardo Anísio, que ela definiu como um profundo conhecedor de música, especialmente a brasileira. “Na década de 1990, quando eu tinha acabado de lançar o livro Os campos noturnos do coração, ele me telefonou para falar de forma entusiasmada sobre os contos. A partir de então, nos tornamos amigos. Ricardo era ternura e dureza. Tratava os amigos com delicadeza e respeito; porém, quando o tema era música e/ou política, mostrava-se intransigente em seus pontos de vista, argumentando com uma impetuosidade que, por vezes, acabava por afastar pessoas do seu convívio. Eu o admirava. Autodidata, Ricardo Anísio publicou livros sobre música e alguns poemas, merecendo destaque o MPB de A a Z. Parte o amigo, ficam as boas lembranças das nossas infindáveis conversas sobre música, política, cinema e literatura. Ficam o bem-querer e a saudade”, afirmou Arnaud.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de setembro de 2023.