Crimes de Guerra. Esse termo não sai das discussões políticas e nem das mais recentes reuniões diplomáticas entre os países desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Hoje, as violações do direito durante os conflitos armados permanecem estampando as manchetes dos jornais de todo o mundo com acusações contra o estado de Israel por cometer os mesmos delitos contra o povo palestino, infringindo regulações internacionais. Isso está provado, mas o que pouco se sabe é que um paraibano nascido em Umbuzeiro é o responsável pelo mais completo projeto de codificação do Direito Internacional Público, criado sob fortes aspirações de liberdade e justiça para todos os povos.
É o que defende a escritora, advogada e professora universitária paraibana Alanna Aléssia em Epitácio Pessoa: O codificador do direito internacional americano (Arraes Editores, 248 páginas, R$ 88). Na obra, que será lançada às 18h de amanhã, na Academia Paraibana de Letras, em João Pessoa, ela remonta a história que coloca o único brasileiro a ocupar os mais elevados cargos dos três poderes da República no centro da formulação do regramento jurídico que norteia a relação entre as nações até hoje. Esse legado não se restringe apenas ao direito de guerra, mas também ao comércio internacional, às telecomunicações, aos tratados de soberania e ao direito internacional humanitário. Em um projeto complexo, Pessoa criou sozinho mais de 700 artigos que serviriam depois de base para a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA).
“Quando Epitácio Pessoa fala sobre guerra e sobre proteção humanitária, que ainda não tinha esse título, ele falou em respeito a certos limites, como não poder bombardear hospitais, edifícios consagrados aos cultos, escolas e habitações civis não defendidas. Que os ataques sejam militares e direcionados a militares, dando quatro possibilidades de negociação antes de chegar na guerra”, analisa a especialista, que produziu a pesquisa para a sua dissertação de mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tendo por escopo o período que vai de 1911 até a morte de Epitácio Pessoa, em 1942.
O ano de 1911 é singularmente importante porque foi quando o Barão do Rio Branco designou o paraibano, que até então era ministro do Supremo (depois de ter sido deputado e ministro da Justiça de Campos Sales) a tarefa de codificar o direito internacional. Esse era um contexto em que a América já vinha tentando se reunir em uma tentativa de se autorregular por meio de conferências em um período bem anterior à criação da ONU. Pessoa já era reconhecido nacionalmente, ascendendo rapidamente na política e no STF. No Supremo, ele chama a atenção por nunca ser voto vencido. “Toda vez que Epitácio levava uma relatoria para o STF, todo mundo o seguia por unanimidade”.
Era esse perfil negociador que seria explorado da personalidade de Epitácio a partir de então. “Ele fez o máximo possível para colocar isso de uma forma que todos os países conseguissem entrar no consenso. Epitácio Pessoa não colocou a visão brasileira no código. Ele fez um desenho de como a América estava se comportando e aí colocou isso no código dele”, explica a autora. Com o documento pronto, o código foi apresentado na Conferência Internacional de Jurisconsultos, em 1912. Mesmo com representantes de diversas potências, a exemplo dos EUA, Epitácio foi nomeado presidente das reuniões, conduzindo os demais representantes a aprovarem o extenso texto praticamente por unanimidade. O código não entraria em vigor, porém, por causa do estouro da Primeira Guerra Mundial. Mas esse não seria o fim da influência do paraibano nesse tipo de negociação. Pelo contrário.
Com o fim da guerra, Pessoa é novamente chamado para ser o chefe da delegação brasileira, depois da recusa de Rui Barbosa, para negociar o Tratado de Versalhes assinado pelas potências europeias. O acordo foi plenamente vantajoso para o Brasil, garantindo a liberação do café nacional retido nos portos alemães e confiscando os 70 navios apreendidos pelo Brasil durante a guerra. O liberal Rui Barbosa renunciou a essa tarefa para poder se dedicar à campanha para presidente do Brasil, mas, ironicamente, foi o conservador Epitácio Pessoa quem ganhou aquela eleição com mais de 70% dos votos, sem tirar os pés de Paris. Uma prova de como o regime oligárquico da “República café com leite” possuía uma máquina bastante azeitada.
Foi no governo de Epitácio Pessoa que mudanças profundas começaram a aparecer no país. Ele elevou a imagem do Brasil no exterior depois de fazer um giro pelos EUA e a Europa, reunindo-se de igual para igual entre os líderes mundiais. Internamente, ele investiu em obras contra a seca e gastou muita verba federal para valorizar o café brasileiro. Era um período de efervescência popular, a sociedade convivia com o aumento das reivindicações dos militares, dos operários e até da classe artística, que promoveu a Semana de 22. Havia uma sensação generalizada de injustiça social que tomava as cidades e era capitalizada pelos militares, que promoveram uma tentativa de golpe com a Revolta do Forte de Copacabana. Apesar disso, o político paraibano conseguiu fazer o seu sucessor.
Fora do Palácio do Catete, Epitácio permaneceu com relevância durante a 2ª Conferência Internacional de Jurisconsultos, em 1927, que é mais uma vez conduzida por ele. Dessa vez, com os textos ligeiramente modificados em comparação ao que foi apresentado em 1912, a comissão aprova 12 projetos de tratados extraídos do código de Epitácio, que foram sendo refomulados seguidamente até ser aprovado com a OEA. O livro de Alanna Aléssia comprova que a versão final do texto possui todas as digitais do paraibano com trechos mantidos tal qual foram escritos por ele. “Depois disso, ele foi chamado para ser juiz da Corte Internacional de Justiça, que é a Corte de Haia, como a gente chama hoje em dia. Epitácio Pessoa se torna o primeiro juiz brasileiro na maior corte mundial”, destaca.
Com tamanho prestígio, Epitácio Pessoa chegou a receber convite para presidir a Corte, mas declina. “Ele não gostava muito da Corte. Em cartas, ele chega a fazer um poema debochando da Corte porque ele não a considerava jurídica, mas uma corte política. Ele dizia: ‘Venham todos, mas tragam uma dose de rum para ver o que a mais alta corte vai falar sobre política’”, conta a autora, acrescentando também uma outra recusa de Epitácio, dessa vez para ser diplomata dos EUA, onde chegou a ser secretário de uma comissão interna estadunidense que tratava de Direito Internacional.
Com tantos serviços prestados ao Brasil e de repercussão global, uma dúvida persiste latente para a pesquisadora. Com toda a investigação de rigor científico empreendida por Alanna Aléssia em registros históricos da Biblioteca Nacional, em livros, cartas, discursos oficiais e em jornais como A União e Correio Braziliense, ela não entende o porquê de o legado de Epitácio não ser mais valorizado. Mas ela se arrisca a uma resposta:
“Epitácio não era um político de esquerda. A gente não pode nomeá-lo assim. Era sobrinho do Barão de Lucena, em uma família de nomes que se mantinham no poder, ainda que em cargos alternados. Mas isso não é justificativa para apagar o legado e a memória dele. É óbvio que a gente tem que fazer críticas aos que precisam ser criticados, mas temos também que enaltecer o que é nosso. Todos eles têm suas questões políticas, suas questões ideológicas, seus ideais e nem por isso foram apagados da história. Questões políticas fizeram com que ele fosse apagado. A gente não ia ser tão bem visto no cenário internacional. O histórico da diplomacia brasileira é incrível. Temos figuras sensacionais e Epitácio Pessoa foi uma delas”.
Epitácio Pessoa morreu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, com um quadro de Mal de Parkinson e problemas cardíacos. Com o assassinato do sobrinho João Pessoa, ele nunca mais voltaria à Paraíba.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de novembro de 2023.