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Escrito nas estrelas

publicado: 10/11/2025 09h33, última modificação: 10/11/2025 09h33
A vencedora Tetê Espíndola e outros finalistas lembram para A União a final do Festival dos Festivais, que completa 40 anos em 2025
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Tetê Espíndola interpretou a canção campeã, “Escrito nas estrelas” | Ilustrações: Bruno Chiossi

por Esmejoano Lincol*

Pesquisadores e leigos que analisaram ou viveram aquele momento podem atestar: o ano de 1985 foi emblemático. A consolidação da abertura política no Brasil, a primeira vitória de Ayrton Senna na Fórmula 1 e a estreia do Rock in Rio resumem, vagamente, esse recorte temporal. Ao mesmo tempo, a TV Globo celebrava 20 anos de existência com o êxito da novela Roque Santeiro e a promoção de programas especiais. Um deles, o Festival dos Festivais, que remetia ao sucesso de eventos desta monta. O objetivo foi alcançado: Tetê Espíndola tornou-se uma estrela com “Escrito nas estrelas”, a grande vencedora; já Leila Pinheiro e Emílio Santiago consolidaram--se junto ao grande público. Quatro décadas depois, A União relembra o desfecho da competição, com o depoimento de quem viveu aquelas emoções.  

Emílio Santiago foi um dos destaques

A final foi realizada no ginásio do Maracanãzinho, palco de outros eventos similares, em 26 de outubro de 1985. Os artistas estavam sob a regência do maestro César Camargo Mariano e a direção de Roberto Talma. Para a apresentação e os comentários, foi escalado o jornalista Nelson Motta, que liderava a transmissão e tecia comentários. O júri, por sua vez, era um amálgama representativo de diversos segmentos da cultura brasileira daquela época, mas a maioria nasceu no Sudeste: Rita Lee, cantora e compositora; Paulo Moura, músico; Tárik de Souza, crítico; Marcelo Tas, jornalista; Malu Mader, atriz; Arthur Moreira Lima, músico; Sérgio Cabral, jornalista; Ricardo Amaral, empresário; e Chacrinha, apresentador.

Entre os 12 finalistas, estavam grupos efêmeros como o Zipertensão, liderado por Cid Campos (filho do poeta paulista Augusto de Campos). Sua faixa, o pop rock “Vamp neguinha”, contava com uma performance em estilo de “videoclipe”, privilegiada pelo jogo de câmeras da televisão; mas toda a “pirotecnia” era diluída na visão de quem acompanhava in loco.

A notoriedade de outras canções ficou restrita ao festival e ao crivo técnico do júri. Um exemplo, “A última Voz do Brasil”, do mítico conjunto Joelho de Porco, foi eleita a Melhor Letra. A composição de Armando Ferrante Jr., Próspero Albanese, Tico Terpins e Zé Rodrix era interpretada de maneira polifônica e soava ruidosa em meio à transmissão.

O grupo infantil Os Abelhudos também se destacaram

“Elis, Elis”, homenagem à Pimentinha da MPB, falecida três anos antes, foi salva do “apagamento” pós-festival graças à voz de Emílio Santiago, eleito o Melhor Intérprete. A música composta por Estevan Natolo Jr. e Marcelo Simões, fazia referência, na letra, a faixas marcantes do repertório de Elis Regina, como “O bêbado e a equilibrista”.

Na outra ponta, uma faixa aclamada pelo público, mas esquecida pelo júri: “Condor”, de Oswaldo Montenegro, com referências à marcha da redemocratização brasileira, em curso, e entoada a plenos pulmões pela plateia. O autor apresentou-se ao longo da competição com o coral Raça, extenso grupo de vocalistas que deram o tom “gospel”, apontado por Nelson Motta.

“Você pra mim foi o sol... “

O Festival dos Festivais contou com o patrocínio da Shell, que havia fornecido nome para outros certames realizados na década. Oswaldo e Emílio sagraram-se campeões em dois momentos: o primeiro com “Agonia” (parceria com Mongol) em 1980; o segundo, na defesa de “Pelo amor de Deus”, obra de Paulo Debétio e Paulinho Rezende.

Entre as novidades em 1985, estava o grupo infantil Os Abelhudos, que surfava na onda do Balão Mágico e antecipava o sucesso do Trem da Alegria. Tatiana, Rodrigo e Diego Saldanha animaram crianças e adultos presentes na final, com uma letra “de gente grande”: “O dono da Terra”, de Nair Cândia, coescrita pelo pai dos dois meninos do conjunto, Renato Corrêa.  

O júri concedeu a medalha de bronze para “Verde”, de Eduardo Gudin e J. C. Costa Netto. A intérprete, Leila Pinheiro, foi eleita a revelação do evento, aos 25 anos. Apesar de ter alcançado prestígio com o seu primeiro disco, de 1983, ela nunca havia participado de um evento dessa magnitude. O convite partiu diretamente do maestro César Camargo Mariano.

“Estávamos ali em 1985, antes de internet, antes de redes sociais. Ao vivo mesmo. E isso me abriu todas as portas, porque eu saí de lá com um convite do Roberto Menescal, que naquela altura era o diretor artístico da gravadora Polygram. Ele disse: ‘Leila, não tenho nada para dar para você, a não ser a minha palavra’. E estou agarrada a ela até hoje”, assevera a cantora.

A vice-campeã, “Mira Ira”, era uma composição de Lula Barbosa e Vanderlei de Castro, com interpretação do primeiro e de Miriam Mirah, do grupo Tarancón, falecida em 2022. O conjunto Placa Luminosa fornecia o arranjo que abocanhou um segundo troféu. O título e certas estrofes são cantados em tupi-guarani.

“Inspirei-me em Miriam. Escrevi parte da letra e mandei para o Vanderlei. Ele pesquisou e descobriu que ‘mira’ (povo) ‘ira’ (mel), era “povo que gosta do mel”, uma expressão tupi. O Tarancón e a Placa Luminosa deram uma liga muito grande, com os vocalistas Márcia Cauê e Ivette Matos. Aí foi uma explosão de sons e cores no palco do festival”, rememora Lula.

O refrão chiclete de “Escrito nas estrelas” e o arranjo que mesclava elementos do rock, do pop e até do sertanejo foi composto por Carlos Rennó e Arnaldo Black — este, casado com Tetê Espíndola. De uma apresentação marcante, mas quase desastrosa no MPB Shell de 1981 (interpretando “Londrina”, de Arrigo Barnabé), a cantora rumou para o ápice da popularidade. 

“Eu tinha 10 anos de carreira. Estava no auge da meninice, da voz. Com trinta e poucos anos, você está tinindo. Eu estava pronta para aquele momento. Mas eu nunca imaginava que ia ser todo esse sucesso. Foi o jeito da minha voz ser ouvida, com uma música tão popular. E eu fico muito feliz de ter essa música e esse sucesso na minha vida”, conclui Tetê.  

Canções da finalíssima (pela ordem de entrada em cena)

  • “Caribe, Calibre, Amor”

De Jorge Portugal e Roberto Mendes. Com Jorge Portugal, Roberto Mendes e Grupo Santa Cruz.

  • “Verde”

De Eduardo Gudin e Costa Netto. Com Leila Pinheiro (3º lugar e revelação).

  • “Condor”

De e com Oswaldo Montenegro.

“Os metaleiros também amam”
De Ayrton Mugnaini e Carlos Melo. Com Língua de Trapo.

  • “Novos Rumos”

De Ana Ivo e Rossini Ferreira. Com Cida Moreira.

  • “O dono da Terra”

De Nair Candia e Renato Corrêa. Com Os Abelhudos.

  • “Vamp neguinha”

De Cid Campos. Com os grupos Zipertensão e Panapaná.

  • “Tempo certo”

De Souza Netto e Ubiratan de Sousa. Com Ubiratan de Sousa e grupo Casinha da Roça.

  • “Escrito nas estrelas”

De Arnaldo Black e Carlos Rennó. Com Tetê Espíndola (1o lugar)

  • “A última Voz do Brasil

De Armando Ferrante Jr., Próspero Albanese, Tico Terpins e Zé Rodrix. Com Joelho de Porco (Melhor Letra)

  • “Elis, Elis”

De Estevan Natolo Jr. e Marcelo Simões. Intérprete: Emilio Santiago (Melhor Intérprete).

  • “Mira Ira (Nação mel)”

De Lula Barbosa e Vanderlei de Castro. Com Lula Barbosa, Mirian Mirah, Taracón e Placa Luminosa (2º lugar e Melhor Arranjo)

Tadeu Mathias chegou à semifinal do festival

Nem só de aplausos viveu o Festival dos Festivais. Além da recepção morna à convencional “Novos rumos”, de Ana Ivo Rossini Ferreira, na voz da experiente Cida Moreira, a torcida aguerrida vaiou com veemência a banda Língua de Trapo, que trouxe para o Maracanãzinho a irônica “Os metaleiros também amam”. “Não é uma música típica de festival. Muita gente odiou, mas muita gente gostou, entrou no espírito de irreverência e tal. Teve até gente dizendo que era a melhor coisa do evento inteiro. Democracia tem dessas coisas”, sentencia Ayrton Mugnaini Jr., que coescreveu a faixa com Carlos Melo.

Tadeu Mathias não foi para a final, mas sua música fez sucesso | Foto: Divulgação
O Nordeste trouxe mais representantes valorosos para aquela final, em outubro de 1985. Os baianos Jorge Portugal e Roberto Mendes somaram suas forças às do grupo Santa Cruz para apresentar “Caribe, Calibre, Amor”, com swing latino. Nelson Motta revelou, durante a transmissão, a ligação que recebeu de Maria Bethânia, pedindo apoio aos conterrâneos.

“Não ia resolver nada porque eles não entendiam nada. Aquela música chegou até onde chegou, mas não era para ganhar o festival. Ela chamava atenção pela maneira nova que estava ali sendo colocada. Alcançou o que queria alcançar mesmo”, assinala Roberto.

O maranhense Ubiratan Sousa e o grupo Casinha da Roça estiveram a cargo de “Tempo certo”, com as presenças simbólica e física do maracatu. Essa canção foi composta em parceria com Sousa Netto, irmão de Ubiratan, já falecido. O intérprete denuncia que quase foi “roubado” por um dos produtores — este não quis pagar o cachê. A celeuma gerou uma discussão em um hotel do Rio de Janeiro.

“Nesse momento adentrou no hall o Boni (vice-presidente de operações da Globo, na época), que ao saber do que acontecia deu um grito e disse: ‘Pague Ubiratan, que ele faz cultura’. O cara abriu a pasta e foi tirando a grana”, rememora.

Foram realizadas, ao todo, quatro grandes eliminatórias para o Festival dos Festivais, entre o primeiro e o segundo semestre de 1985. Todas elas também foram transmitidas ao vivo pela televisão, num total de 48 canções. Algumas que não seguiram para a finalíssima ganharam sobrevida nas rádios e na TV graças à sua adição em trilhas sonoras de novelas, caso de “Minha aldeia” e “Depois da primeira vez”, compostas e defendidas, respectivamente, por Sérgio Souto e Toninho Negreiro. Ambas embalaram a primeira versão de Sinhá Moça, exibida no ano seguinte, no horário das 18h.

Um representante paraibano chegou à semifinal — Tadeu Mathias, criador e intérprete de “Sentimento e blues”. Radicado no Rio de Janeiro desde o início da década, Tadeu começou a ganhar certo destaque no cenário fonográfico após o lançamento do álbum Zuada de Boca, em 1983. Ele superou 12 mil inscritos e apresentou seu trabalho concorrente na eliminatória em Recife, cujo palco foi montado no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o Geraldão. O júri, diverso, contou com as presenças das atrizes Regina Casé e Patricya Travassos e dos críticos de arte Juarez Fonseca, Paulo Putterman e Sílvio Lancellotti.

“Sentimento e blues” foi superada por três faixas — em Recife, cavaram caga na final “Calibre, Caribe, Amor”, “O dono da Terra” e “Novos rumos”. Mas, somada à predileção do supervisor do festival, Solano Ribeiro, o paraibano garantiu a simpatia de outros célebres integrantes da equipe.

“Também curti muito a admiração que as jornalistas Glória Maria, Astrid Fontenelle e Leila Cordeiro nutriram por mim naquele momento”, evoca. A canção foi editada em compacto pela Polygram, no fim daquele ano, e foi pinçada ainda para a trilha da novela De Quina pra Lua. “Era o tema de Bruno, papel de Paulo Betti”, rememora Tadeu.

Através deste link, acesse o vídeo com a final do festival

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 9 de novembro de 2025.