As unhas negras da “Tigresa” Zezé Motta são uma das características marcantes que Caetano Veloso elencou na música que escreveu em 1977, regravada por ela em 2024. Foi com essas mesmas unhas que ela agarrou todas as oportunidades que conseguiu ao longo de cinco décadas de carreira e 80 anos de vida – a serem completados na próxima quinta-feira. Agraciada neste mês com o prêmio de melhor atriz na segunda edição do Festival Internacional de Cinema de João Pessoa (FestincineJP), Zezé reencontra, a partir desta semana, seu personagem de maior importância na televisão: Sônia Rangel, paisagista da novela Corpo a Corpo, que completa 40 anos neste ano e passa a ser reprisada no Canal Viva amanhã, às 14h40.
Nascida em Campos dos Goytacazes no Rio de Janeiro, ela cresceu muito próxima da arte. “Meu pai queria que eu trabalhasse com a música, enquanto a minha mãe queria que eu fosse estilista. E eu acabei decepcionando os dois e indo para a atuação”, disse, rindo. Mas os anseios de seu pai nunca saíram do radar da jovem Zezé. Ingressou em um curso no mítico Teatro Tablado, no fim da adolescência, mas, na virada dos anos 1960 para os 1970, participou, cantando, da montagem de importantes peças, como Roda Viva, de Chico Buarque e Zé Celso, e a adaptação brasileira do musical Gosdpell.
Conquistou o cinema aos poucos, em papéis menores nos filmes Vai Trabalhar, Vagabundo (1973) e A Rainha Diaba (1974). Na grande tela, o ponto de virada foi Xica da Silva, longa de Cacá Diegues de 1976, sobre a mítica escrava mineira. Venceu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Brasília e levou mais de três milhões de espectadores ao cinema.
Pioneirismo na TV
Todavia, o sucesso com Xica não foi suficiente para que ela tivesse destaque imediato na televisão. Em 1979, um ano depois de gravar o seu primeiro disco pela Warner, Zezé participou do especial Mulher 80. Ela apareceu ao lado de outros grandes nomes da MPB, como Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia e Rita Lee. De todas, ela era a única artista negra. “Olhando para trás, me traz mais uma sensação agridoce. Já naquela época, tinham muitas outras mulheres pretas que poderiam estar se apresentando, mas eu acabei sendo a única escolhida. Que bom que, atualmente, as coisas evoluíram e nós temos mais espaço”, assevera.
Corpo a Corpo, que estreia amanhã no Viva, é, na opinião de Zezé, uma trama revolucionária, “que demorou demais para ser reprisada”. Na novela escrita por Gilberto Braga, ela dá vida a Sônia que conquista o coração do playboy Cláudio, interpretado por Marcos Paulo. Nesse ínterim, ela provoca uma revolução na família do preconceituoso Alfredo Fraga Dantas, papel de Hugo Carvana. As reações de parte do público ao casal interracial eram as piores possíveis. Pesquisas encomendadas pela TV Globo deram conta de que uma parcela dos telespectadores não achava o par “crível”. A secretária eletrônica de Marcos ficou abarrotada de recados racistas sobre sua interação com Zezé em frente às câmeras.
“As pessoas não estavam acostumadas a ver uma mulher negra em uma posição de protagonismo na televisão e, infelizmente, foi um choque”, rememora. Ela diz que, apesar da celeuma, a emissora bancou o casal e não cogitou separar os personagens – “até porque um dos principais temas da novela era justamente aquele par e toda a tensão racial que vinha com aquele romance”, pontua Zezé. Desistir da TV por conta do trauma? “Nunca pensei! Sempre mantive minha cabeça erguida contra o racismo. E que bom, porque hoje temos várias mulheres negras sendo protagonistas em novelas. Valeu a pena”, sinaliza Zezé.
Nas décadas seguintes, a atriz seguiu por caminhos diferentes no cinema. Em 1989, foi convidada pela Disney para dublar a personagem Úrsula, a vilã da animação A Pequena Sereia. O grande medo de Zezé na época era de que as crianças sentissem medo ou raiva dela. “Aconteceu justamente o contrário. Hoje em dia, Úrsula é uma das vilãs mais amadas dos filmes da Disney”, celebra.
Zezé já esteve na Paraíba em 2018, durante as filmagens do filme O Nó do Diabo, com locações no Engenho Corredor, em Pilar. “Foi um projeto muito especial porque, além de ser um terror, é um filme que toca em temas que são muito relevantes aqui no Brasil, como a escravidão, o racismo e o colonialismo”, informa Zezé.
Prêmio em João Pessoa
Deixa, dirigido por Mariana Jaspe, foi o curta que rendeu a ela o troféu no FestincineJP. Zezé interpreta uma mulher que se prepara para receber em casa o marido, prestes a sair da prisão, ao mesmo tempo em que precisa se despedir do atual namorado, com quem se relaciona em segredo. “Minha personagem no filme tem muitas fragilidades, medos e traumas, ao mesmo tempo em que é cheia de paixão, vida e força. A dificuldade está justamente em conseguir passar e balancear todas essas emoções para o público”, declara Zezé.
A dias de festejar oito décadas de vida, ela comemora ainda a recente participação na série documental Tributo, do Globoplay, e projeta novos trabalhos, como a segunda edição do especial Mulher Negra, do canal E!, e a participação no longa-metragem Por Um Fio, baseado em livro de Drauzio Varela, com estreia a definir.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de junho de 2024.