Uma narrativa que se constrói a partir da descrição naturalista do cotidiano de um idoso solitário, mas que encontra sua profundidade humanista através de uma perspectiva onírica e fabulosa da vida. É como se equilibra o tom de O alecrim e o sonho, primeiro longa de ficção do potiguar Valério Fonseca, e que tem produtora e protagonista paraibanos. Drica Soares, da Carambola Filmes, e o protagonista Fernando Teixeira estarão presentes hoje, às 19h, na sessão especial do filme, que será seguida por um debate realizado com o público presente no Cine Bangüê. Os ingressos custam R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Vicente é um professor aposentado e viúvo que mora no bairro do Alecrim, em Natal (RN). O filme mostra a vida do homem entre sonhos lúcidos e a brutal realidade do nosso mundo. Dissecando sobre relações familiares a perseguições etaristas, a história vai revelando de forma introspectiva a rotina do personagem que não tem nada de extraordinária: ele acorda, segue para a padaria, anda de ônibus e leva o passarinho na gaiola para passear. “O maior mérito do filme é o de falar sobre o tédio do velho, do ócio. Daquela coisa de buscar bastante formas de não se entediar. A questão do velho é mesmo a limitação física e a perda de desenvoltura”, resume Fernando Teixeira.
Mas é quando finalmente o filme se aproxima da intimidade de Vicente que ele se mostra um personagem singular. “Ele sonha a vida toda, e sonha acordado. O tempo todo a vida dele é de sonho. Ele fica o tempo todo na recordação do seu passado, e gosta dessa situação. Ele vive o cotidiano, independente das reações da negação do velho e da estupidez. O filme mostra que não é preciso parar porque se está velho. É a única maneira que você tem para viver”, acrescenta o ator de 81 anos. Em um desses sonhos acordados, ele conversa com a sua falecida esposa Joana Eulália, interpretada por Zezita Matos, a primeira dama do teatro paraibano, alcunha dada exatamente pelo amigo Fernando Teixeira, conhecido como o homem das artes.
A dupla consagrada reedita uma parceria histórica que faz sucesso de crítica e público desde a peça Auto da Compadecida, em 1976. “Mas antes disso a gente já trabalhava juntos. Na vida real somos amigos e, no filme, somos marido e mulher. Quando você começa a trabalhar e vai tendo um envolvimento tão grande, aquilo fica quase real para gente”. Muitos outros paraibanos estão presentes em Alecrim, como Suzy Lopes e Daniel Porpino. A trama abre espaço ainda para homenagear o artista paraibano José Pedro Fernandes, conhecido como Baixinho do Pandeiro. O filme conta também com a participação de Stepan Nercessian e Valdinéia Soriano.
Quando você começa a trabalhar e vai tendo um envolvimento tão grande, aquilo fica quase real para gente
Os paraibanos marcam presença inclusive por trás das câmeras, como Ana Isaura (direção de arte), Martina Nobre (figurino), Johnny Lopes (maquiagem) e Ely Marques (efeitos especiais), que morreu em 2021. Eles estarão representados no debate pela produtora executiva Drica Soares, fundadora da Carambola Filmes, e que há mais de 20 anos desenvolve seu trabalho no audiovisual paraibano, tendo produzido mais de 15 filmes, alguns premiados como o longa Desvio (2019). O alecrim e o sonho teve estreia mundial no International Film Festival of India, e participou do Molodist Kyiv International Film Festival, na Ucrânia, onde recebeu menção especial. O título esteve ainda entre os 28 filmes nacionais que disputaram uma vaga para representar o cinema brasileiro no Oscar 2024, mas ficou de fora dos seis que permanecem no páreo pela indicação.
“Foi uma experiência muito incrível e um filme bastante diferente para se trabalhar. Passei entre três e quatro dias em Natal, vivendo no apartamento do personagem onde foram realizadas as filmagens para a gente ir se familiarizando por ele ser um velho solitário morando daquela casa”, destaca Teixeira. De forma bem direta, o filme de Valério Fonseca faz homenagens a personagens igualmente idosos e solitários que de alguma forma inspiraram o enredo Alecrim. Em determinado momento da projeção, Vicente é visto assistindo ao clássico Morangos silvestres (1957), de Bergman, e, em outro ele emula a dança com talheres e pães como fez Chaplin em Em busca do ouro (1925).
Se tornar um octogenário e ainda permanecer trabalhando era uma dúvida que Fernando Teixeira tinha sobre a sua carreira, uma vez que ele temia não encontrar mais bons papéis para interpretar. “É bom para se viver [no cinema] o momento em que você está vivendo atualmente. Encontrar bons papéis de velho é difícil. No teatro, o único papel de velho que é fixo é o de Rei Lear, de Shakespeare, que todo mundo quer fazer, mas ninguém tem coragem, por ser muito pesado. Isso é uma brincadeira, mas o papel de velho não é algo fácil de aparecer”, considera o veterano. “Vicente não é um angustiado. Ele busca viver e ser legal com as outras pessoas. Vicente é feliz, não é um cáustico, para baixo. Eu também busco ser desse jeito”.
Fernando Teixeira se prepara agora para viajar para o município paulista de Mogi Guaçú para mais um papel no cinema. No filme, que deve se chamar Reminiscência, ele vai dar vida a um velho cego e homossexual. “Estou dando uma trabalhada nisso porque é muito difícil o tal do fazer cego, e conseguir parar o olho. Mas eu mesmo não quero parar, não. Vou ficar fazendo até quando der. Estou com 81, mas ainda quero fazer algumas coisas”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 12 de setembro de 2023.