por Gi Ismael*
“Sobrevivência em plena quarentena / É sobre o ócio, é sobre o ódio, sobre o sistema / É sobre o que se faz com todos seus poemas / É sobre uma vida inteira paga como pena”. A pandemia do novo coronavírus virou um tema recorrente em expressões artísticas feitas desde o ano passado. Enquanto o peso do isolamento é um dos tópicos do disco Espaço Justo - 2º Ato, a nova obra de Filosofino explora inúmeras vivências passadas pelo cantor e compositor ao longo de sua vida.
Lançado recentemente, o disco é uma continuação do EP Espaço Justo - 1º Ato, que chegou às plataformas digitais em setembro de 2020 e conta com três faixas musicais e uma de declamação de poesia. Racismo, política, saúde mental, pertencimento na sociedade e a busca por um espaço justo. Filosofino tem muito a dizer com os dois trabalhos. “No disco, falamos sobre ocupar um espaço de justiça na sociedade e superar as dificuldades de lidar com nossos próprios demônios”, explica.
E não há espaço de justiça que se ocupe sozinho. O senso de coletividade é frequente na obra de Filosofino, dos eventos de slam e batalhas de rap aos estúdios de gravação no BBS, um núcleo de produção criativa. Diversas faixas do disco foram feitas com parcerias musicais, como ‘Reload’, com o MC Karkará Kiriri e beats de Riegulate, ‘¼ de Fúria’, com beats de Matteo Ciacchi e letra feita em conjunto com Arthur Pessoa, e ‘Manifesto dos Cantos’, que conta com Yves Fernandes e Ana Morena, na bateria e baixo, respectivamente.
“Eu sempre fui muito eclético e quando eu me tornei músico, passei a respeitar muito mais os gêneros musicais mais diversos possíveis. Na vivência da BBS, fiquei em contato com gente do rock, hip hop, coco, dub… Isso sempre foi um ponto positivo para a gente criar. Isso já é natural no nosso processo criativo”, disse. Ainda sobre linguagens diversas e coletividade, em novembro deste ano foi lançado o jogo Nomad Soul Zero, game da banda Rieg, no qual Filosofino é o protagonista da trama. Mari Santana, flautista e vocalista de apoio no disco Espaço Justo - 2º Ato, também é personagem do game.
Artista múltiplo, Caetano dos Santos, nome de batismo de Filosofino, conquistou o prêmio de Melhor Intérprete e o 2º lugar no 3º Festival de Música da Paraíba com a canção ‘Manifesto dos Cantos’, presente no 2º Ato. Em 2021, ele garantiu o 3º lugar na categoria Melhor Artista de Hip Hop, no Prêmio Toroh de Música Independente da Paraíba.
Espaço Justo - 2º Ato foi dirigido por Daniel Jesi, Riegulate e Matteo Ciacchi e o produtor paraibano Guirraiz assina a mix e master. O disco foi lançado pelo selo DoSol (RN) em parceria com o estúdio de produção criativa BBS (João Pessoa).
Sobre o novo trabalho: “Não acredito que tenha sido terapêutico”
Foto: Bruna Dias/Divulgação
“Eu gosto de pensar na metáfora do castelo. Ninguém derruba um castelo com uma pedrada. Para ele cair, precisa estar fragilizado. A pessoa fragilizada quando desaba é por conta de tempos que ela está ali, sucumbindo”. Uma das principais mensagens do ‘Espaço Justo’ aborda a importância da saúde mental, especialmente entre homens pretos e periféricos. “Botar a máscara / ir para um baile / achar que eu sou de aço / essa é a lágrima do palhaço”, rima Filosofino na faixa ‘¼ de Fúria’.
“Sempre tive dificuldades de concentração. Por trabalhar desde criança, nunca fui atrás de investigar, nunca parei para me cuidar de fato. Quando eu comecei a procurar terapia, já foi depois dos 18 anos e mesmo assim sem muita prioridade”, contou. “Quando a coisa veio estourar mesmo, minha vida parou. Não consegui lidar sozinho e isso se tornou um problema real. A depressão apareceu”, revelou o músico.
“A abordagem que trago para a saúde mental é de se cuidar mesmo. Abrir mão de uma força que o jovem acredita que tem, especialmente o jovem periférico preto, que recebe uma carga de que ele é muito forte, que ele não pode falhar, ele não pode parar. Que ele não precisa parar, não precisa se priorizar. A gente recebe essa carga e só segue em frente. Mas a gente precisa retomar o cuidado consigo, seja por práticas integradas de saúde, por psicoterapia, psiquiatria, óleo de CDB… O que for indicado para cada um”, finalizou.
Enquanto muitos artistas encaram suas obras e o processo criativo como terapêutico, Filosofino entende todo este ciclo como uma válvula de escape. “O disco foi o resultado de várias vivências, mas eu não acredito que tenha sido terapêutico em si. Vejo ele como uma panela de pressão. O que foi mais terapêutico neste tempo foi andar de bicicleta, cantar nas batalhas, participar de shows. Isso me deu mais uma sensação de bem-estar do que a produção em si do disco”, disse, afirmando que várias feridas foram abertas na composição de algumas canções.
“A produção sob as condições de uma saúde mental comprometida acaba sendo uma parada tão pesada, sabe? De vez em quando, o cara sente que cada letra que você escreve tá doendo. Mas quando sai, dá um alívio. Esse disco foi uma saída de emergência”, refletiu. “Acho que se a gente continuar procurando esse ‘espaço justo’ e estarmos tão lascados novamente ao ponto de ainda bater nessa tecla, a gente vai ter que falar disso de novo. Se não, espero que a gente tenha outros assuntos para falar”, finalizou, aos sorrisos.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de dezembro de 2021