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Fragmentos poéticos das estranhezas do contemporâneo

publicado: 07/12/2023 09h02, última modificação: 07/12/2023 09h02
Hoje, na Livraria A União, em João Pessoa, premiado escritor mineiro Marcílio Godoi lança a coletânea de contos ‘Como escovar os dentes num incêndio’
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Obra reúne 43 contos que tratam da estranheza do presente escritos em prosa poética e em múltiplos focos narrativos - Imagem: Editora Patuá/Divulgação

por Joel Cavalcanti*

Dissecando a metáfora de forma breve, a realidade é o incêndio e a prioridade com a profilaxia dentária é obrigatoriamente a alienação. O título pode servir como um estranho manual, mas também pode ser um grito de indignação diante da insanidade. Fazer tal exercício analítico talvez não seja, porém, a melhor forma de perceber os contos do premiado escritor mineiro Marcílio Godoi. É possível que desta maneira se percam as outras dimensões do texto, como na história de uma mulher que sem maiores explicações começa a flutuar pela casa e sobre a piscina enquanto laços de fitas vão nascendo pelo seu corpo. Ela fala com o marido, mas a cada momento o homem em desespero ouve um idioma estrangeiro diferente. A mulher apenas segue flutuando nessa metáfora da separação.

Esse é o conto Carmem, apenas um de todos dos 43 com nomes de pessoas em Como escovar os dentes num incêndio (Patuá, 220 páginas, R$ 60), que será lançado hoje, às 18h30, na Livraria A União, em João Pessoa. São contos que tratam da estranheza do contemporâneo escritos em prosa poética e em múltiplos focos narrativos. “A ideia era mesmo de causar esse estranhamento, a começar pela capa do livro e pelo título, gerando nas pessoas essa sensação de uma total incompreensão, e, por esse estranhamento, gerar uma espécie de filiação em que o leitor fica encantado pelas histórias do nosso cotidiano”, descreve Godoi.

Por cotidiano entenda-se os acontecimentos prosaicos da vida, mas é possível estender essa compreensão para os episódios corriqueiros que não possuem amarradores de um sentido maior, que não fecham em si um arco dramático. É como se as narrativas breves se expandissem apenas a partir de fragmentos individuais. Esse foi o maior desafio para o autor: criar histórias a partir de cenas, algumas mais leves e divertidas, outras bem mais densas. “Fiz muitos experimentalismos buscando novas formas de narrar uma mesma história. E as histórias param no meio, aí a pessoa fica com aquela história congelada. A linguagem fica meio que suspensa no ar”, compara o autor.

É assim, por exemplo, na história de um caminhoneiro que dá carona a uma jovem. E é só. Ou na história de um pedreiro que faz serviços na casa de uma mulher e ele fica encantado por ela, contando só dos trabalhos que fez na casa para ela e descreve, em segunda pessoa, os pequenos reparos que fez no imóvel. Em outra, uma mulher pega as cinzas do pai e sai andando de bicicleta à tarde visitando os lugares em que eles passaram juntos. Em mais uma, a prosa é sobre uma mulher que tem um pé maior que o outro. E é só isso. Não vai acontecer nada. São narrativas em que as coisas estão paradas no ar, no não dito. Parar o ar foi justamente o que pretendeu Godoi.

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Nas narrativas de Godoi, nada acontece, tudo está parado no ar, no não dito, no qual o leitor termina cada texto com a respiração suspensa - Foto: Fernando Lutterbach/Divulgação

“Queria que o leitor tivesse esse vagar, esse silêncio. Queria só que ele sentisse essa respiração suspensa. Todos os contos terminam com a respiração suspensa. Procurei muito tentar o impossível, que é escrever o silêncio e colocar esses pequenos vazios, essa instabilidade, esse indizível da poesia numa linguagem corrente, numa prosa. Queria que os contos conseguissem transmitir esse silêncio. O estado de suspensão da alma. Nada muito importante está acontecendo, mas a gente fica com o coração na boca”, afirma o escritor sobre suas intenções com os textos breves que incluem desde personagens mais simples até os que desenvolvem um pensamento mais elaborado em histórias que se passam na Argentina, no Nordeste brasileiro e em São Paulo.

Marcílio Godoi lançou no ano passado Etelvina, romanc­­e em primeira pessoa estruturado como o diário de partida de uma mulher idosa com uma prosódia interiorana diante do diagnóstico de uma doença terminal. O livro foi escolhido como Melhor Romance no Prêmio Candango de Literatura e firmou a linguagem do escritor por nuances mais memorialistas, algo que ele segue em um caminho oposto com a sua estreia no universo dos contos, justamente o que o traz pela primeira vez a João Pessoa. A capital paraibana está incluída na agenda de lançamentos antes mesmo de São Paulo por um motivo curioso.

“Fico pensando toda hora porque os meus amigos são todos de João Pessoa. Eu nunca entendo”, questiona-se o autor. Apesar de nunca ter vindo para a cidade, ele é amigo de muitos escritores que moram por aqui, como Débora Dornelas, André Ricardo Aguiar, Maria Valéria Rezende e Guga Limeira, com quem tem parceria na composição de uma dezena de músicas. O autor mineiro é graduado em Arquitetura e Jornalismo, doutor em Letras pela USP e mestre em Crítica Literária pela PUCSP. Além do nome na capa do livro, Godoi está escrito no título de um dos contos, produzido com toques autobiográficos.

“Ele se refere necessariamente a um possível escritor, a um possível autor. É a hora que eu apareço entre todo mundo. Mas eu procuro administrar esses caras todos, o arquiteto, o jornalista, o menino, o editor, o poeta... Às vezes, eu corro à casa dele, podo as folhas dele, tento administrar esses vários eu, que no fundo estão em todas as partes do livro. Mas procurei sair de mim, ir na direção do outro, que eu acho que é uma das urgências do nosso tempo. Eu acho que as pessoas vivem num mundo absurdado pela sua individualidade. Tudo parece que está encaixado dentro de uma normalidade que é um grande incêndio que está consumindo tudo”, finaliza Marcílio Godoi.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 07 de dezembro de 2023.