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Baiana morre, aos 77 anos de idade, e cantoras paraibanas repercutem o legado deixado pela artista tropicalista

Gal Costa, um vozeirão que se cala

publicado: 10/11/2022 12h34, última modificação: 29/12/2022 15h32
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Gal Costa lançou mais de 40 discos em 57 anos de uma carreira que conduziu com ousadia e criatividade - Foto: Foto: Eduardo Nicolau/Estadão Conteúdo

tags: gal costa , mpb , CULTURA

por Joel Cavalcanti*

 

“Ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão”, entoava na música ‘O amor’ a cantora baiana Gal Costa, que morreu ontem (8) aos 77 anos de idade, em São Paulo. Se a beleza é realmente uma condição para se atingir a eternidade, a voz de uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos tem a marca do que é eterno. Afastada dos palcos desde setembro, quando se submeteu a uma intervenção cirúrgica para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita, a causa do óbito não foi divulgada pela família da artista. Em 57 anos de carreira, mais de 40 álbuns e inúmeros prêmios, Maria da Graça Costa Penna Burgos revolucionou a música ao conciliar a modernização da tradição vocal brasileira com uma forte atitude libertária.

Segundo o produtor cultural Antônio Alcântara, estava agendado um show de Gal Costa em João Pessoa, no Teatro A Pedra do Reino, para o mês de maio de 2023. A apresentação foi inicialmente marcada para este ano, mas por questões burocráticas, precisou ser adiada. “Estou muito triste porque esse era um show que eu queria muito trazer. Estava vibrando com isso, teria sido lindo”, lamenta. O último show da cantora na Paraíba foi no próprio A Pedra do Reino, em fevereiro de 2019.

A perda é especialmente sentida por todas as mulheres que fazem da voz seus instrumentos de expressão artística e das que mantém muito vívida as palavras que ecoam em suas mentes repetindo que ‘não temos tempo de temer a morte’, como é o caso da paraibana Cátia de França.

“Essa perda afeta todas nós”, afirma a pessoense que recorda com detalhes da primeira vez que viu Gal Costa de perto. Foi no Recife, onde morava na época, durante um show no Teatro do Parque, quando a artista baiana divulgava o álbum ‘Fa-tal’ (1971), um dos mais emblemáticos da discografia nacional. “Ela estava comemorando a volta dos baianos, com Gil e Caetano saindo do exílio. A alegria e a energia do show estava maior ainda, encantava a todos nós. Foi uma alegria na plateia. Ela era de uma exuberância, de uma alegria, sensualíssima. Quando eu fecho os olhos, é disso que eu me lembro”, conta Cátia de França ainda tomada pelo impacto da notícia que chocou o país na manhã de ontem.

Carregando um legado da Bossa Nova para modernizá-lo na Tropicália até desaguar nas batidas eletrônicas dos discos mais recentes, a musa da contracultura brasileira encarnou a melhor representação de Dorival Caymmi a Ary Barroso, de Noel Rosa a Jards Macalé, de Caetano Veloso e Emicida. Gal ama igual.

Apesar de um repertório tão consagrado, ela jamais saiu por muito tempo de uma posição experimental da música, seja com os divinos seios à mostra para inundar as almas dos caretas ou com um violão entre as pernas, seja com a sobriedade de quem dominava como poucos o talento cristalino que carregava. Tantos foram os caminhos que ela percorreu que no seu rastro vieram muitas outras cantoras, mesmo que de matizes musicais diferentes, como a paraibana Sandra Belê, que dedica sua carreira ao cancioneiro nordestino.

“Uma mulher incrível que abriu caminhos para as demais que vieram atrás. Mostrou como se faz e fortaleceu a presença da mulher na música com uma voz muito potente. Uma das maiores do Brasil. Gal Costa me inspirava em relação a sua postura artística e humana nesse universo da arte. O que conforta é que ela foi reconhecida e isso é muito bonito, apesar de achar que perdemos ela muito cedo”, atenua a cantora de Zabelê, que segue: “Desbravadora, corajosa, ousada. Ela não apenas mostrou isso durante a Tropicália, por exemplo, mas em um período muito recente Gal Costa se renovou demais. Ela acompanhou a evolução musical, a evolução dos tempos com uma mudança de postura sobre o que se quer da música. Gal fez isso dentro do universo que lhe cabia de forma muito bonita e poderosa”, destaca.

Cantando uma paixão que ainda há de brilhar na noite do céu de uma cidade do interior, a voz de Gal é uma festa dos tempos de quando ninguém matava, ninguém morria. Ela brilha com uma vontade de celebrar feito louca a vida, que é curta e que ela queria muito mais. Mas quando ela deixa falar a voz do coração ao cantar ‘Baby’ ou ‘Minha honey baby’, de ‘Vapor barato’, ou ‘Baby te amo nem sei se te amo’, em ‘Pérola Negra’, dá para dizer que a gente quer é viver e até fazer de conta que ainda é cedo. Mas ainda deu tempo para que uma nova geração percebesse que as coisas sagradas, como a voz de Gal, permanecem. Como é o caso da cantora, pesquisadora e professora de técnica vocal, a paraibana Maria Alice.

“Parece que vai embora um pedaço da gente também, sabe? Uma parte importante do nosso canto, da nossa música, da nossa arte, da nossa referência musical, vocal e artística. Gal Costa era uma estrela. Sempre foi. Quando comecei a cantar, escutava a voz aguda, afinada e precisa de Gal Costa ecoando pela casa, prestando atenção nas nuances, no timbre, na grandeza do seu cantar, tentando aprender através da escuta, um pouquinho do que ela fazia”, lembra a artista, que há pouco tempo viu Gal cantar ‘Força estranha’ em um programa de TV, ao lado de Caetano Veloso, ela já com uma voz mais grave.

“Mas igualmente precisa, afinada e cheia de emoção, dizendo com firmeza ‘por isso é que eu canto, não posso parar, por isso essa voz tamanha’. Cheia de confiança em cada nota e palavra que cantava, fez Caetano se emocionar. E a mim também. Chorei feito menina. Tinha algo no canto de Gal, mais maduro, mais grave, mais profundo, que me fez lembrar do porquê ‘eu canto e não posso parar’. Desde esse dia, sempre que canto ‘Força Estranha’, escuto Gal cantando junto. A partida dela mexe com tudo. Não há quem não sinta a perda dessa artista gigante e importante para a história da música brasileira. Gal é uma estrela. Sempre foi. Sempre será. Sua ‘voz tamanha’ está eternizada em nossos corações”, finaliza Maria Alice.

Gal Costa, doce e bárbara

Gal Costa não foi só uma grande cantora, foi uma artista sem tamanho. A baiana deixou um legado ímpar na música brasileira, que começa em 1964, quando fez seu primeiro show, na inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador (BA), onde nasceu 19 anos antes.

Ex-balconista de uma loja de discos, Gal não demorou a se enturmar com aqueles jovens e irrequietos baianos que apontavam novos rumos para a música jovem brasileira, após o reinado da Jovem Guarda. Assim, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, Gal entraria para a história como ícones do Tropicalismo e iria eternizar canções ‘Baby’, ‘Meu nome é Gal’, ‘Chuva de Prata’, ‘Meu bem, meu mal’ e ‘Barato total’.

Em apenas três anos - entre 1967 e 1969 – Gal Costa protagonizou três discos históricos: ‘Domingo’, em parceria com Caetano, é sua estreia em LP. Em 1968, integrou o coletivo ‘Tropicália’ e, no ano seguinte, enfim, lançou um disco solo, o homônimo ‘Gal Costa’, que trouxe releitura para a paraibaníssima ‘Sebastiana’, de Rosil Cavalcanti, famosa na voz de Jackson do Pandeiro.

Em quase 60 anos de carreira, ela soube ousar, criar e recriar. Nos anos 1970, lançou álbuns que estabeleceram parâmetros para a música nacional e ganhou o respeito definitivo da crítica.

Nos 1980, a consagração junto ao grande público, emplacando um sucesso após o outro, no rádio e em novelas de TV. Nos anos 1990, se rendeu ao audiovisual e acabou por lançar um dos seus álbuns mais populares, o ‘Acústico MTV’.

Nas últimas duas décadas, o número de gravações caiu, mas ela soube se reinventar, abraçando toda uma nova geração - como seu afilhado Moreno, filho de Caetano Veloso com a atriz Dedé - e concebendo obras-primas como o disco ‘Recanto’.

Além de uma voz sem igual na MPB, Gal Costa também soube ser uma voz política no Brasil das últimas cinco décadas. Em 1994, no show ‘O Sorriso do Gato de Alice’, dirigido por Gerald Thomas, ela aparecia de peito aberto ao cantar ‘Brasil’, de Cazuza. O número, lembrou, ontem, a Folha de SP, provocou vaias do público.

“Eu fiquei impressionada com a quantidade, com o número de pessoas que se chocaram por ver um peito de uma mulher de fora, num palco. Eu acho que aquilo era colocado de uma maneira tão digna”, disse Gal ao programa Roda Viva em 1995.

Caetano, Gil e Bethânia lamentam

São inúmeros os projetos que permeiam sua carreira, mas um merece destaque: Os Doces Bárbaros, grupo que reuniu Caetano, Gil Gal e, ainda, Maria Bethânia em 1975 e rendeu turnê e até um filme. Em 2002, o quarteto voltou aos palcos e gerou um novo documentário, ‘Outros (Doces) Bárbaros’.

Através de suas redes sociais, Gil se despediu da conterrânea com a poética que lhe é natural: “Vai com ela a voz maviosa, o encanto do canto extraordinário que sempre foi a sua marca. Fica conosco a saudade, a tristeza, o pesar…”, diz o coautor (em parceria com Caetano) de ‘Divino maravilhoso’, que Gal Costa gravou no disco de 1969.

Na mesma postagem, Gil revela que chamava Gal de “Gaúcha”. “Fica a saudade pra mim, pra todos que eram próximos dela e pra tanta gente na extensão deste Brasil imenso que se encantava com o canto dela. Agora o canto dela fica conosco pro resto das nossas vidas, pra o tempo todo da nossa história”, escreveu.

Bethânia publicou um vídeo em que expressou sua dor pela partida de Gal Costa: “Em choque, triste demais, difícil demais. Eu nunca pensei um dia chegar a vocês para falar sobre a dor de perder Gal. O Brasil que ela sempre encantou com sua voz única, magistral, hoje, inteiro, chora. Como eu”, afirmou.

Até o fechamento desta página, Caetano não havia postado nada a respeito da conterrânea nas redes sociais. Mas em entrevista, ao vivo, na Globo News, ontem à tarde, o músico baiano lembrou como conheceu a futura parceria e a relação que tinha com ela.

“Ao longo dos anos, eu compus muitas canções para Gal cantar, a pedido dela. E tem uma canção, cuja letra, talvez, responda a sua pergunta, que diz assim: ‘Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação, minha luz escondida, minha bússola e minha desorientação, se o amor escraviza, mas é a única libertação, minha voz é precisa, vida que não é menos minha que da canção’”, recitou, com a voz para lá de embargada, um trecho de “Minha voz, minha vida”, que a cantora lançou em 1982.

Velório será aberto ao público em SP

Baiana de Salvador, onde foi declarado luto oficial de três dias, Gal Costa será enterrada em São Paulo, nesta sexta-feira, logo após o velório, que irá ocorrer das 9h às 15h, na Assembleia Legislativa de São Paulo, e será aberto ao público em geral. Porém, o sepultamento será restrito a familiares e amigos próximos.

O governador da Bahia, Rui Costa, e o prefeito de Salvador, Bruno Reis, lamentaram a morte da cantora em suas redes sociais, assim como muitos outros políticos.

O presidente eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), disse que Gal renovou a cultura do país e marcou a vida dos brasileiros: “Gal Costa foi das maiores cantoras do mundo, das nossas principais artistas a levar o nome e os sons do Brasil para todo o planeta. Seu talento, técnica e ousadia enriqueceu e renovou nossa cultura, embalou e marcou a vida de milhões de brasileiros”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 10 de novembro de 2022.

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