Meio século depois de sua fundação, a companhia de dança contemporânea brasileira Grupo Corpo mantém a mesma disposição de nadar contra a corrente. Ao dizer que “a ideia da piracema açambarca várias facetas do Grupo Corpo”, Rodrigo Pederneiras, cofundador do corpo de baile em 1975 e coreógrafo da equipe desde 1978, não exagera. Criando, recriando e resistindo, o grupo de Belo Horizonte aporta em João Pessoa com a estreia do balé Piracema, em apresentações hoje e amanhã, às 19h, no Teatro Paulo Pontes, do Espaço Cultural, em Tambauzinho. A noite abre com outra obra do grupo, Parabelo. Os ingressos antecipados encontram-se à venda no site Sympla, por R$ 75 (meia) e R$ 150 (inteira).

Piracema foi concebida em parceria entre Rodrigo e Cassi Abranches, que assumiu recentemente o posto de coreógrafa residente da equipe. A metáfora do movimento dos peixes que sobem o rio em busca de novas águas define bem o espírito de resistência e transformação que marca a movimentada trajetória da companhia, dotada de reconhecimento internacional. “Por anos fizemos mais espetáculos no exterior do que no Brasil”, comenta Pederneiras.
Para o coreógrafo, a criação da nova peça foi movida, a princípio, pela comemoração da nobre efeméride. “Não é fácil uma companhia de dança particular, em lugar nenhum do mundo, chegar a essa idade ainda produzindo como a gente continua produzindo. Tem a ver um pouco com esse nadar contra a corrente, contra as águas e chegar a um ponto onde a gente tenta sempre uma renovação”, ele atesta.
Duas correntezas
“Foi muito difícil”, enfatiza o coreógrafo sobre a nova obra, fruto de um processo claramente incomum. Com a divisão dos núcleos criativos coreografados por Pederneiras e Abranches, a companhia trabalhou, simultaneamente, em dois balés independentes.
“Eu não via o que ela estava fazendo e ela não via o que eu estava fazendo. Era como dois times de futebol”, ilustra. E tudo isso pensado a partir da trilha inédita composta pela multi-instrumentista Clarice Assad, em ambiências sonoras que transitam entre ritmos tribais e eletrônicos.
“Quando juntamos as duas partes, foi um dia absolutamente emocionante. Tínhamos dois balés completos que precisavam se encaixar, o que exigiu um exercício de desapego muito grande”, conta.
O resultado, diz ele, foi uma fusão imprevisível: “Em alguns momentos, as coisas se chocavam, em outros se completavam de uma forma que parecia combinada”.
Tal método de criação colaborativa traduz o próprio movimento de transição vivido pelo grupo. Cassi Abranches, que há anos integra a equipe artística, assume papel central na renovação das ideias e das linguagens do Corpo.
“É uma forma de reestruturar e renascer”, comenta Pederneiras. “Ela é muito mais jovem e traz ventos novos. É importante fazer isso. Tenho 70 anos, sou coreógrafo desde 1978, então é hora de renovar”.
Parabelo
Na turnê que marca o cinquentenário da companhia, Piracema divide o palco com Parabelo, peça de 1997 criada com trilha original dos compositores Tom Zé e José Miguel Wisnik, resultante de uma pesquisa duradoura. O reencontro entre as duas obras reúne tempos distintos da trajetória do grupo, aproximando o gesto inaugural da busca por uma “dança brasileira” e a atual fase de experimentação.
“Parabelo é realmente a peça mais requisitada do nosso repertório”, afirma o coreógrafo. “É talvez o trabalho mais regional, porque fala do sertão nordestino. É um trabalho que a gente tem um carinho muito especial; de força especial por esse lado mais regionalizado dele. Foi de um período em que demos continuidade à busca do que seria uma dança brasileira, uma forma de se mover brasileira; um jeito brasileiro de mover, de dançar, de caminhar”.
Com quase três décadas de existência, Parabelo guarda atualidade inconteste, de acordo com o coreógrafo.
Busca pela identidade
A partir dos anos 1980, o Grupo Corpo passou por um período de aprendizado, fundindo elementos do balé clássico com gestualidades populares brasileiras, ainda ao som de músicas já gravadas. O caminho, lembra Pederneiras, começou com a escolha de músicos eruditos brasileiros — Henrique Oswald (1852–1931), Bruno Kiefer (1923–1987), Alberto Nepomuceno (1864–1920) e, obviamente, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) — e evoluiu para o diálogo com compositores contemporâneos convidados. A estrutura artística também passou a funcionar mais integrada, com Rodrigo nas coreografias, Paulo Pederneiras na direção e iluminação e Fernando Velloso na cenografia.
“No início da década de 1990, começamos a nos perguntar: ‘Puxa, Tchaikovsky compunha para a dança, Stravinsky compunha para a dança — por que é que nós não convidamos compositores para compor para nós?’”, recorda.
Dessa inquietação eclodiu a terceira (e mais produtiva) fase da história da companhia, que veio a definir de vez a identidade do Grupo Corpo. O baile agora passava a ser embalado por canções compostas exclusivamente para cada obra, assinadas por nomes como Caetano Veloso (na obra Onqotô, de 2005), Gilberto Gil (Gil Refazendo, 2022), Tom Zé (em Parabelo, de 1997, e Santagustin, de 2002), Lenine (Breu, 2007), Arnaldo Antunes (O Corpo, 2000), João Bosco (Benguelê, 1998), Marco Antônio Guimarães (em Bach, de 1996, e Dança Sinfônica, de 2015), entre outros.
“Eu sempre trabalho a partir da música”, diz o coreógrafo. “Preciso da trilha antes de criar. Damos liberdade total ao compositor, pedindo apenas que a peça tenha cerca de 40 minutos”.
Essa relação criativa, ele ressalta, costuma transformar também a quem compõe. “Lenine dizia que, depois de compor Breu para nós, mudou completamente sua forma de compor”.
Além da chegada de Cassi Abranches à criação coreográfica, novas gerações integram-se à equipe artística, entre elas o filho de Rodrigo, Gabriel Pederneiras, que há 20 anos participa do processo criativo, entre mergulhos, contracorrentes e renascimentos.
“A gente se propõe a desafios que parecem impossíveis. Em Piracema, chegou um ponto em que eu pensava: ‘Não vai dar certo’. Mas é isso que mantém o frescor: o impulso de continuar criando. Essa é a nossa piracema”, conclui.
Convidado pelo maestro e violinista venezuelano Gustavo Dudamel, o Grupo Corpo apresentou a peça Estancia (de Alberto Ginastera), junto à Filarmônica de Los Angeles, para mais de 14 mil pessoas, no Hollywood Bowl, em 2023. Deu tão certo que Dudamel, que ora parte para o comando da Filarmônica de Nova York, convidou a companhia novamente para a despedida do regente daquela casa, que ocorrerá no dia 26 de fevereiro do ano que vem.
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*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de Outubro de 2025.
