por Joel Cavalcanti*
“Amódio” é um neologismo que une as palavras “amor” e “ódio” para brincar com o conceito da psicanálise de Jacques Lacan, para quem “o verdadeiro amor desemboca no ódio”. Esse é também o nome do single que já está disponível nas plataformas de streaming do primeiro álbum da carreira solo de Guga Limeira. A escolha de ‘Amódio’ é simbólica para representar tudo que o músico procura explorar no conjunto das oito faixas que chegam ao público ainda na primeira metade do mês de julho. “Esse repertório é muito pessoal e, talvez por isso, essas músicas não tenham tido espaço em outros lançamentos de grupo. Ele fala muito de mim”, define o artista sobre o disco que leva o seu nome.
Além de cantor, Guga Limeira é um compositor muito fértil e sempre procurou dar vazão à sua produção através de álbuns de várias bandas da qual faz parte, como A troça harmônica (2015), Banda-fôrra (2015, 2018 e 2022) e Quadrilha (2019 e 2020); e também por meio de outros intérpretes paraibanos, sempre muito interessados em sua forma peculiar em tratar o sentido sonoro e semântico das palavras. Para se ter uma ideia, apenas este ano, o cantor e compositor paraibano Elon gravou uma música de ambos em seu primeiro álbum, assim como é esperado que Pedro Índio Negro grave outras duas. O novo disco de Adeildo Vieira também deve contar com uma composição de Guga. Ainda no mês passado, a Banda-fôrra apresentou mais oito composições inéditas dele no álbum Baladas para adiar o fim do mundo.
“Não sei se sou um compositor profícuo, mas talvez um promíscuo”, brinca ele. “Eu me considero um compositor muito ativo. Sou meio viciado nisso. Gosto de fazer e de colecionar parceiros e parceiras”. No álbum homônimo, metade das faixas são só suas, e as demais ele divide a assinatura com Lucas Dourado, Hugo Limeira e Amorim, que é também produtor, arranjador e diretor musical do disco. Escrever é um hábito diário para o músico pessoense, que também é poeta com dois livros lançados e professor formado em Letras pela UFPB. A canção é a forma com a qual Guga Limeira enxerga o mundo e como ele consegue expressar todas as suas influências, que passam ainda pela dança e pelo teatro. “Minha intenção, em um futuro próximo, é fazer uma playlist para eu ver tudo que já tem gravado. Mas o que ainda não está gravado, meu Deus do céu, não saberia contar”.
O que ‘Amódio’ antecipa do álbum preste a ser lançado é a aposta que seu idealizador faz em uma linguagem pianística muito forte que, em conjunto com um naipe de metais, garante uma estética que se apoia no jazz tal qual o estilo das músicas de cabaré da década de 1920. A falta de apelo ou concessão ao que está vigente atualmente na música se aplica também ao léxico verbal que ele se utiliza. A canção lançada no último domingo é bem humorada e propõe um divertido jogo de palavras que poderia ter se inspirado nas relações firmadas nas redes sociais, nas quais os haters buscam desesperadamente demonstrar suas paixões pelas pessoas que seguem através de ofensas e críticas fervorosas. Como diz a letra: “Pra falar de você eu queria usar palavras que ferissem, palavras que te mastigassem, palavras que te iludissem”. Mas ‘Amódio’ não tem o menor grau de preocupação em ser contemporânea ou moderna, em estar conectada com os sucessos do momento.
Curioso sobre os temas da psicanálise enquanto paciente e casado com uma psicanalista, foi a esposa Isadora quem cravou o nome da canção. “As pessoas enxergam o ódio como sendo o oposto do amor, mas não é bem assim. Acho que o oposto do amor é, na verdade, a morte”, diz Guga citando mais uma observação do psicanalista francês Lacan. “O ódio é muito vizinho do amor. Ele engaja de forma parecida”, complementa. Além do suporte lacaniano, Guga Limeira confessa que não há ineditismo em perceber que o ódio tempera o amor e vice-versa. Ele mesmo cita que esta relação está há muito tempo cristalizada na música brasileira desde em canções como ‘Atrás da porta’, de Chico Buarque (“te adorando pelo avesso”), até ‘Baby me atende’, de Matheus Fernandes (“Ai que vontade de tacar meu celular na parede”).
O conceito de “álbum-solo”, mesmo que leve o nome do cantor e compositor em questão, é uma abstração. São muitas pessoas que se associam ao projeto, companheiros que dividem vários processos criativos do disco. Estão presentes em Guga Limeira os músicos Amorim (violão, guitarra e contrabaixo), Helinho Medeiros (piano), Gledson Meira (bateria), Costinha (saxofone), Emanoel Barros (trompete) e Azeitona (trombone). Com fotos promocionais de Kécia Andrade, o lançamento foi gravado por Marcelo Macêdo e Hugo Limeira no Peixe Boi Estúdio e financiado com recursos da Lei Aldir Blanc. “Quando eu pensei em gravar um disco todo meu, a única coisa que eu sabia era que eu queria fazer algo diferente de tudo que eu já tinha feito antes”, finaliza Limeira.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 15 de junho de 2022