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Heróis animados improváveis

publicado: 02/08/2024 10h02, última modificação: 02/08/2024 10h02
“Bizarros Peixes das Fossas Abissais” estreia no Cine Bangüê, com debate após a sessão, com o diretor Marão
Bizarros Peixes das Fossas Abissais - 01.jpg

Uma tartaruga com TOC, a mulher cuja bunda vira um gorila e a nuvem com incontinência: enfrentando rinocerontes alienígenas pelo mundo | Imagem: Divulgação/ Vitrine Filmes

por Esmejoano Lincol*

Uma mulher, uma tartaruga e uma nuvem. Os três personagens principais do longa-metragem de animação Bizarros Peixes das Fossas Abissais, estreia de hoje do Cine Bangüê do Espaço Cultural, chamam atenção por si sós. Mas esperem até ouvir as características principais de cada um deles: a mulher possui o superpoder de transformar seus glúteos em um gorila, a tartaruga é portadora de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e a nuvem sofre de incontinência “pluviométrica”. Embarcando numa viagem por espaços distintos, os três heróis estarão juntos na primeira sessão do longa em João Pessoa, hoje, às 19h, seguida de uma oficina com o diretor, Marão.

Nascido em Nilópolis, na Baixada Fluminense, o realizador recorda que seu interesse pela animação surgiu na infância e foi exercitado intuitivamente, rabiscando os bloquinhos de anotação do armarinho de seu pai. “Em vez de fazer contas, eu fazia vários desenhos com uma pequena mudança em cada folha e depois as passava rapidamente para ver o desenho se mexendo. Era ainda só uma brincadeira de criança, e eu não sabia ainda que aquilo era o princípio do flipbook, de uma cena animada”, rememora.

Adolescente, partiu para a produção de quadrinhos caseiros, que ele mesmo traçava, grampeava e vendia para os amigos. Pouco tempo depois, entrou para o seu primeiro curso de desenho animado, algo raro nos idos dos anos 1980 e 1990; a técnica foi aperfeiçoada ao longo dos anos, resultando no seu primeiro curta animado — Cebolas São Azuis, de 1996. De lá para cá, foram outros 13 filmes com minutagens pequenas, alguns bem premiados como Até a China (2015). “Todos os curtas foram animados em ordem cronológica, avançando e desenvolvendo a narrativa à medida que o filme era feito — e sendo modificado e escrito também à medida que realizávamos, ao contrário da logística formal de uma produção”, detalha Marão.

Os personagens protagonistas são dublados, respectivamente, por Natália Lage, Rodrigo Santoro e Guilherme Briggs. Natália, conhecida por seus papéis em novelas e nas séries A Grande Família e Tapas e Beijos, fez sua estreia dando voz a um personagem animado. Já Santoro é mais calejado em dublagem: sua primeira empreitada foi há mais de 20 anos, com o personagem título de O Pequeno Stuart Little. O experiente Briggs, que esteve na semana passada em João Pessoa, no Imagineland, empresta sua faceta mais doce para o seu personagem, diante das muitas vozes criadas em mais de 30 décadas de atuação como dublador — incluindo personagens clássicos como Superman e Mickey Mouse. 

Imagem: Divulgação/ Vitrine Filmes

O trio percorre diversas paisagens em busca de um misterioso mapa, numa narrativa inspirada na clássica jornada do herói, conceito teorizado pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell. “Todavia, essa jornada funciona apenas para possibilitar bizarras situações de humor nonsense durante todo o filme. Não é direcionado ao público infantil, mas paradoxalmente é sobre uma família. Uma família esdrúxula e desarmônica, mas uma família unida e leal”, explica o realizador. 

Tanto os atores quantos os membros da equipe de produção foram recrutados a dedo por Marão e o acompanharam ao longo de seis anos — tempo que durou a pós-produção: Rosaria e Fernando Miller estavam ao lado dele na animação; Silvana Andrade cuidou da pintura; Wesley Rodrigues dos cenários; Duda Larson compôs a trilha sonora; Ana Luiza Pereira o desenho de som; e Alessandro Monnerat e Yohana Lazarova, por fim, finalizaram a montagem. “Convidei diretamente cada um e cada uma. Todos e todas eram pessoas que eu conhecia há muito tempo e que faziam parte da minha vida”, revela Marão.

Marão celebra a escalada no número de animações produzidas no Brasil, puxadas pela audiência infantojuvenil dos cinemas e dos canais pagos de televisão. Apesar de não ter direcionado a narrativa lisérgica de Bizarros Peixes para os pequenos, eles são um público ativo nas sessões comentadas. “É sempre uma surpresa. Eles participaram enfaticamente dos debates, fazendo perguntas mais inteligentes que as dos adultos”, assevera o animador. 

BIZARROS PEIXES DAS FOSSAS ABISSAIS
- Brasil, 2024. Dir.: Marão. Vozes na dublagem: Natália Lage, Guilherme Briggs, Rodrigo Santoro.
- Estreia hoje, às 19h no Cine Bangüê (Espaço Cultural, R. Abdias Gomes de Almeida, 800, Tambauzinho, João Pessoa) 
- Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Crítica: animação livre é a personalidade forte do filme

Os curtas animados dirigidos por Marão seguem uma estética livre em que personagens independem de cenários, vestígios de rascunhos se misturam a ilustrações elaboradas, o coloquial anda de braço dado com o caricatural e a narrativa de super-heróis encontra o drama familiar mais humano. Isso tudo também está em seu primeiro longa, Bizarros Peixes das Fossas Abissais, tão curioso quanto seu dramático título.

A história segue uma mulher e seu amigo nuvem buscando reunir cacos de um vaso, antes que rinocerontes alienígenas reúnam os pedaços primeiro. A dupla acaba virando um trio quando eles encontram uma tartaruga com TOC. Dublados por Natália Lage, Guilherme Briggs e Rodrigo Santoro, esses personagens seguem uma jornada por vários lugares e enfrentando várias aventuras. O insólito é quem dá as cartas, como colocar o astro Santoro na voz da minúscula tartaruga que luta com obstinação contra sua extrema limitação de velocidade para organizar como pode o caos do mundo.

O filme não tem muitas amarras na narrativa, permitindo caprichar no nonsense. A mulher tem poderes estranhos, como a bunda se transformar em um gorila, a nuvem tem “incontinência pluviométrica”, e a tartaruga é obcecada por organização. Como esses poderes apareceram, de onde vêm a nuvem, a tartaruga e os rinocerontes extraterrestres, são questões pouco importantes diante dos arroubos visuais que expressam uma informalidade, uma despretensão e uma alegria própria da animação em estar ganhando vida na tela.

Estes são tempos em que os movimentos dos personagens são friamente calculados via CGI, com os longas se preocupando em reproduzir os gestos da vida real, e já vimos muitas produções com aquela animação limitada em que só uma parte do corpo ou a boca se mexe e todo o resto fica imóvel. Em ambos os casos, esses estilos renderam, ao longo dos anos, tanto exemplares que guardamos com carinho na memória quanto obras relapsas e preguiçosas. Em comum, no entanto, elas passam longe da elasticidade visual de digamos um Pernalonga ou um Bob Esponja.

Na simplicidade de sua forma, Bizarros Peixes das Fossas Abissais encontra uma personalidade própria, diferenciando-se dos estilos clássicos de animação, assim como das experiências modernas com CGI.

Neste ponto, Marcelo Marão e seus dois parceiros na animação do filme (Rosaria e Fernando Miller) jogam esses estilos para o alto e preferem uma animação rabiscada, cheia de “imperfeições” ou “mal acabadas”, mas em que podem movimentar completamente seus personagens — às vezes sem cor, às vezes sem cenário, em outras indo do centro do Rio a castelos em ruínas na Sérvia ou às profundezas do oceano (as tais fossas abissais onde encontrarão peixes bizarros).

 

Essa recusa de Bizarros Peixes das Fossas Abissais em seguir um padrão mais realista do CGI, do estilo Disney ou a animação limitada da Hanna-Barbera ou da Filmation é um ponto de destaque. E soa muito natural, não como estratégia: reflete, sobretudo, o espírito do filme.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 02 de agosto de 2024.




Os curtas animados dirigidos por Marão seguem uma estética livre em que personagens independem de cenários, vestígios de rascunhos se misturam a ilustrações elaboradas, o coloquial anda de braço dado com o caricatural e a narrativa de super-heróis encontra o drama familiar mais humano. Isso tudo também está em seu primeiro longa, Bizarros Peixes das Fossas Abissais, tão curioso quanto seu dramático título.A história segue uma mulher e seu amigo nuvem buscando reunir cacos de um vaso, antes que rinocerontes alienígenas reúnam os pedaços primeiro. A dupla acaba virando um trio quando eles encontram uma tartaruga com TOC. Dublados por Natália Lage, Guilherme Briggs e Rodrigo Santoro, esses personagens seguem uma jornada por vários lugares e enfrentando várias aventuras. O insólito é quem dá as cartas, como colocar o astro Santoro na voz da minúscula tartaruga que luta com obstinação contra sua extrema limitação de velocidade para organizar como pode o caos do mundo.O filme não tem muitas amarras na narrativa, permitindo caprichar no nonsense. A mulher tem poderes estranhos, como a bunda se transformar em um gorila, a nuvem tem “incontinência pluviométrica”, e a tartaruga é obcecada por organização. Como esses poderes apareceram, de onde vêm a nuvem, a tartaruga e os rinocerontes extraterrestres, são questões pouco importantes diante dos arroubos visuais que expressam uma informalidade, uma despretensão e uma alegria própria da animação em estar ganhando vida na tela.Estes são tempos em que os movimentos dos personagens são friamente calculados via CGI, com os longas se preocupando em reproduzir os gestos da vida real, e já vimos muitas produções com aquela animação limitada em que só uma parte do corpo ou a boca se mexe e todo o resto fica imóvel. Em ambos os casos, esses estilos renderam, ao longo dos anos, tanto exemplares que guardamos com carinho na memória quanto obras relapsas e preguiçosas. Em comum, no entanto, elas passam longe da elasticidade visual de — digamos — um Pernalonga ou um Bob Esponja. Na simplicidade de sua forma, Bizarros Peixes das Fossas Abissais encontra uma personalidade própria, diferenciando-se dos estilos clássicos de animação, assim como das experiências modernas com CGI.Neste ponto, Marcelo Marão e seus dois parceiros na animação do filme (Rosaria e Fernando Miller) jogam esses estilos para o alto e preferem uma animação rabiscada, cheia de “imperfeições” ou “mal acabadas”, mas em que podem movimentar completamente seus personagens — às vezes sem cor, às vezes sem cenário, em outras indo do centro do Rio a castelos em ruínas na Sérvia ou às profundezas do oceano (as tais fossas abissais onde encontrarão peixes bizarros).Essa recusa de Bizarros Peixes das Fossas Abissais em seguir um padrão mais realista do CGI, do estilo Disney ou a animação limitada da Hanna-Barbera ou da Filmation é um ponto de destaque. E soa muito natural, não como estratégia: reflete, sobretudo, o espírito do filme.