Segundo o biógrafo Carlos Alberto Mattos, o cineasta paraibano Vladimir Carvalho gostava de ser homenageado. “Ele às vezes se dava menos importância do que de fato tinha, para que nós, sabendo de sua relevância vital para o cinema, validássemos o seu trabalho”, explicou o autor. Amigos, colegas, autoridades e admiradores renderam tributo ao artista, falecido ontem, aos 89 anos de idade, em Brasília, e continuam prestando reverência ao cineasta. Mesmo radicado na capital federal há mais de cinco décadas (depois de passar uma temporada no Rio de Janeiro), Vladimir tinha na Paraíba não apenas seu berço, mas alguns de seus laços e feitos mais importantes.
Iniciou sua carreira no cinema justamente nas páginas de A União, publicando resenhas sobre os filmes em cartaz. Lançou-se na realização, em 1960, fazendo parte da equipe de dois importantes capítulos do cinema brasileiro. O primeiro deles, Aruanda, longa-metragem seminal de Linduarte Noronha, sobre o cotidiano dos quilombolas da Serra do Talhado, no município de Santa Luzia, no qual é creditado como assistente de direção. O segundo, Cabra Marcado para Morrer, a partir de convite do carioca Eduardo Coutinho: o projeto para recontar a morte do líder camponês João Pedro Teixeira foi interrompido meses depois de seu início, com a repressão do golpe militar de 1964 (20 anos depois, seria retomado por Coutinho como documentário). Assumiria a direção de seu primeiro curta documental três anos depois — Os Romeiros da Guia, sobre a peregrinação dos fiéis à famosa igreja, santuário erguido na cidade de Lucena.
Seu longa de estreia, o documentário O País de São Saruê, foi filmado no final da década de 1960. Não é apenas a sua obra-prima, mas uma referência perpétua no gênero, retratando a vida dos agricultores e garimpeiros da região do Vale do Rio do Peixe, Semiárido paraibano. Concluído e submetido, posteriormente, à avaliação do regime militar, foi censurado e retirado do Festival de Brasília, no qual seria projetado, em 1971. O cineasta lutaria, nos anos seguintes, para que essa decisão fosse revista, algo que só aconteceria em 1979, quando do início da abertura política no Brasil. Ocupando a 12a posição, São Saruê figura na lista dos 100 maiores documentários nacionais, segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abracine).
“Um herege, no melhor sentido”
O cineasta sucumbiu a um infarto, depois de permanecer internado por alguns dias, para tratar um problema renal. Como revelou o jornalista Carlos Alberto Mattos, que o entrevistou para o livro Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto, o paraibano já tinha introjetado, em seu coração, o gentílico brasiliense. Mudou-se para lá justamente enquanto peregrinava pelos corredores do governo militar, para fazer com que seu primeiro filme circulasse sem cortes nas salas de cinema brasileiras. “Ultimamente, se dedicava ao Cine Memória, museu que organizava por conta própria que reunia um sem-número de itens cinematográficos. Lutava para conseguir que alguém assumisse o projeto antes de falecer, algo que não conseguiu”, revelou o biógrafo.
O governador João Azevêdo lamentou, em nota, a partida de Vladimir, asseverando que sua perda seria sentida na arte em nível nacional. O gestor ainda acrescentou que seus filmes capturaram a essência social e cultural do país. “Guardião da memória e da história do cinema brasileiro, Vladimir sempre valorizou as questões sociais em sua obra, deixando um grande legado que transcende as telas e inspira gerações”, pontuou João. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, também deixou claro o “legado inestimável” deixado como herança pelo paraibano. “Seu olhar sensível e crítico, voltado para o Sertão e para as questões sociais, transformou gerações”, afirmou a ministra.
Os colegas também tiveram muito a dizer sobre Vladimir. O realizador Lúcio Vilar, curador do Fest Aruanda, destacou sua generosidade, como traço marcante: “Chegar aos 90 anos produzindo, sem perder o ímpeto documentarista, já diz muito do profissional que ele foi”.
O também diretor Bertrand Lira, rememora que ele foi um grande incentivador do cinema universitário desenvolvido na Paraíba, nos anos 1970 e 1980: “Ele era muito entusiasmado com tudo. Estava sempre aberto a aconselhar e estimular os mais jovens”. Emocionado, o cineasta carioca Silvio Tendler asseverou que se tornou documentarista graças à inspiração do amigo: “Ele era um herege, mas no melhor sentido da transgressão da palavra”, finalizou.
Vladimir retornou algumas vezes às páginas de A União para falar de sua filmografia, com mais de 20 títulos. Em novembro de 2021, ele comentou a repressão a outros de seus filmes: O Homem de Areia, sobre os 50 anos da Revolução de 1930. Neste longa, ele registrou, quase que por acaso, o encontro do ex-governador José Américo com os escritores Jorge Amado e Zélia Gattai: “Eu estava lá com meu irmão, Walter Carvalho, que, nessa ocasião, participou do primeiro filme como fotógrafo comigo”. Antes, em julho de 2020, ele revelou o desejo — infelizmente não concretizado — de adaptar o romance Doidinho, de José Lins do Rego, para a grande tela, naquela que seria sua estreia no cinema de ficção: “Seria uma homenagem ao meu pai, exímio leitor de Zé Lins, que perdi quando tinha 13 anos de idade”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de outubro de 2024.