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Imagens artísticas “criadas” por máquinas a partir de obras humanas causam uma série de discussões no meio profissional a respeito de questões éticas e de plágios

Inteligência Artificial reza pelo deus ex machina?

publicado: 18/12/2022 00h00, última modificação: 29/12/2022 15h32
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Celebridades como Ivete Sangalo testaram o aplicativo que gera imagens criadas por IA e compartilharam o resultado em suas redes sociais - Foto: Foto: Rede Social/Instagram

tags: inteligência artificial , ai , ia , lensa , app , editor de fotos , artistas

por Gi Ismael*

Em 2018, a Quantic Dream lançou o jogo eletrônico Detroit: Become Human, um game de múltiplas escolhas contextualizado num futuro onde humanos e androides coabitam o planeta. No cenário de ficção inspirado nas obras de Isaac Asimov (1920-1992), as máquinas, subservientes, passam a preencher funções antes ocupadas por homens e mulheres. A aceitação dos robôs, apesar de larga, não era uma unanimidade entre a população que, em certo momento da trama, marcha pelas ruas protestando a favor da desativação dos androides, que começavam a desenvolver consciência própria.

A analogia não é muito distante do nosso presente tecnológico. Na última semana, artistas visuais de todo o mundo se juntaram para um protesto virtual em que se mostraram contra a arte gerada por inteligência artificial (IA). Eles passaram a ocupar suas redes sociais e plataformas de divulgação de arte como o ArtStation com placas que leem: “Não à arte gerada por IA”. Isso acontece porque, recentemente, o aplicativo editor de fotos e vídeos Lensa viralizou na internet quando incluiu uma nova função em seu software que cria imagens feitas por IA. Funciona da seguinte forma: o usuário escolhe entre 10 e 20 fotos suas (o aplicativo sugere que sejam fotos apenas da pessoa, com ângulos diferentes e cenários diferentes) e, em questão de minutos, o programa entrega pacotes de imagens totalmente criadas por inteligência artificial, em diferentes estilos e estéticas, como mangá, aquarela ou fantasia. A tecnologia não seria como outras que aplicam filtros em fotos existentes – ela cria fotos suas, imagens com ângulos e roupas que você nunca usou, por exemplo. Detalhe: a função não é gratuita, e o usuário pode gastar entre R$ 21 e R$ 43, dependendo da quantidade de fotos desejadas.

Da cantora Ivete Sangalo ao seu colega de trabalho, milhões de usuários fizeram seus avatares “mágicos”. O Lensa faturou mais de 16 milhões de dólares em 2022, sendo US$ 8 milhões ganhos somente na primeira quinzena deste mês, ultrapassando o total geral de 2021 de U$ 6,5 milhões. Segundo a TechCrunch, no último dia 12, o Lensa se tornou o aplicativo mais baixado dos EUA – inclusive, no mesmo dia, os três primeiros lugares no ranking de aplicativos mais baixados na App Store no país estavam ocupados por editores de fotos em IA.

Afinal, o que é inteligência artificial? “Russell e Norvig, os autores da principal referência de IA na academia, a definem como “o estudo de agentes [inteligentes] que percebem o ambiente e agem”. Dessa forma, os agentes recebem informações sobre um fenômeno ou ambiente e aprendem como agir, por exemplo, a partir da experiência humana, generalizando essa aprendizagem para situações novas, ainda não apresentadas à máquina”, explicou Thais Gaudêncio, professora de IA do Centro de Informática da UFPB e Doutora em Ciência da Computação.

“Segundo o dicionário Houaiss, arte é ‘a produção consciente de obras, formas ou objetos, voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana’. Por essa definição, IA não seria uma fazedora de arte”, explicou Gaudêncio. “Dessa forma, para a criação de suas imagens, a IA se ‘inspira’ em uma base de dados de artistas e de suas expressões, a partir da junção de características, ou inclusão de novas àquelas já conhecidas, com o uso de ruídos, por exemplo”.

É aí, de acordo com Thais Gaudêncio, que entra a discussão sobre plágio. “Essas bases de dados podem fazer uso de obras sem autorização de seus criadores e isso, por si só, é crime”, disse ela, levantando outra discussão logo em seguida: “no entanto, artistas podem usar referências de outros artistas para criação de suas obras, e aí, onde estão os limites do novo para suas inspirações? A IA seria capaz de entender esse limiar e turbinar sua ‘criatividade’, podendo assim aumentar a mistura de suas experiências, que podem ser, inclusive, aleatórias?”.

A artista visual paraibana Jacqueline Lima foi uma das que utilizou suas redes sociais para protestar contra o mau uso da IA. “Até o momento, as redes sociais não tem nenhuma política que restringe diretamente a hospedagem ou exibição dessas imagens. Isso gerou uma onda de indignação na comunidade artista do mundo”, explicou ela. “Atualmente, o Concept Art Association, que é uma organização em defesa dos artistas, está juntando informações para apresentar para políticos sobre esses problemas de como controlar, atualizar leis de privacidade e propriedade intelectual dos artistas e como lidar com essa tecnologia”.

Jacqueline Lima, que afirma não ser antitecnologia nem contra o uso de aplicativos, acredita que a forma como estes programas estão sendo desenvolvidos é parte principal do problema. “Esses aplicativos não só substituem muitos trabalhos de artistas, mas sim roubam seus trabalhos para fins lucrativos sem, atualmente, nenhuma penalidade. Acredito que existem maneiras mais éticas a partir da regulamentação no uso dos apps e de como isso deve ser trabalhado em parceria com os artistas, com o consentimento expresso e compensação dos dados dos artistas e compra legal de suas imagens. Mas infelizmente não é o caso como está agora”.

O ilustrador Dave Araújo compartilha da opinião de Jacqueline. “Nesse ambiente de criação de conteúdo sob demandas cada vez mais rápidas, acaba que a IA se torna muito mais atraente. A gente tem todo um contexto de precarização de cada vez mais classes de profissionais e acaba que o profissional criativo não está imune a isso. A inteligência artificial acaba se tornando, sim, uma ameaça a classe artística no sentido de que empresas talvez prefiram recorrer à tecnologia por redução de custo e velocidade de criação, como aconteceu com os operários substituídos por máquinas”, disse, e concluiu afirmando que não vê com bons olhos, “embora entenda que, assim como toda tecnologia, ela pode ser boa dependendo do seu uso.

A ponderação mais otimista é o ponto de vista do ilustrador e animador Daniel Serrano. “Para meu trabalho, a IA é uma ferramenta excelente para criar artes conceituais uma vez que ela ajuda a ultrapassar bloqueios criativos e agiliza o processo de criação quando o prazo é apertado”. Ele conta que, ao se deparar com um destes aplicativos, quis experimentar a ferramenta movido pelo entretenimento que ela poderia gerar. “Foi um mix de curiosidade e divertimento. Não vejo nestes aplicativos um dilema criativo, softwares de edição como Photoshop já possuem filtros que usam IA para restaurar fotos antigas (até mesmo recriando pedaços faltantes) sem que gere algum tipo de burburinho. Pra mim, o Lensa foi isso, um app com ‘filtros’ legais”.

Quando questionado se enxerga um perigo concreto na substituição em massa de artistas por softwares, ele diz que não, mas entende a apreensão entre a classe. “Acredito que as manifestações contrárias hoje não são fruto de algum revés mercadológico ou financeiro, mas sim um temor de que essa substituição possa – de fato – acontecer. Acredito que o meio artístico e criativo sempre se viu, de certa forma, imune à expansão tecnológica e esses avanços têm colocado tudo isso em cheque”.

Músico e artista visual Rieg Rodig utiliza de tecnologia em diferentes vertentes de suas criações. “Os artistas estão com raiva da IA generativa por vários motivos. Alguns estão zangados porque seu trabalho está sendo usado ilegalmente para formar bancos de dados; alguns estão com raiva porque algumas pessoas estão usando IA generativa e apresentando-a como se fosse uma arte que eles mesmos criaram, sendo desonesta com clientes em potencial; alguns estão zangados porque a IA generativa é vista como uma maneira das corporações automatizarem o trabalho dos profissionais do setor”, refletiu.

“A meu ver, a luta dos artistas está mal orientada. O inimigo não é a IA ou arte gerada pela IA. É só mais uma ferramenta/técnica para criar. Mas tendo dito isso, não sei se existe uma forma de combater isso exatamente. A internet ainda é meio ‘faroeste’ em termos de leis e direitos autorais. Ainda assim, acho que a discussão precisa ser sobre como as pessoas usam a ferramenta e não a ferramenta em si”, concluiu Rieg

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 18 de dezembro de 2022.