No cosmos, restos de estrelas, com centenas de anos-luz de diâmetro, fazem pairar gases como hidrogênio e hélio que se deixam ver (com auxílio do supertelescópio James Webb), na forma de nuvens de tons cromáticos. Motivado por pesquisa que analisa as relações coextensivas entre corpo e natureza, um grupo de 13 bailarinos prepara-se para levar ao palco do Teatro do Sesc, no Centro da capital, o espetáculo de dança Nebulosa — título inspirado nos longínquos corpos celestes. As sessões gratuitas acontecem hoje, quinta-feira (25) e sexta-feira (26), com duas apresentações diárias — às 15h (reservadas para escolas) e às 20h (abertas ao público, com classificação indicativa para maiores de 16 anos). As cadeiras são limitadas, com entrada mediante reserva de bilhetes na plataforma Sympla.
A Paralelo Cia. de Dança, que na semana passada completou 21 anos de atuação na cena artística paraibana, integra o projeto, resultante de uma disciplina de conclusão do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Como explica Joyce Barbosa, coreógrafa, professora do curso e diretora do projeto, a proposta nasceu em sala de aula, quando ministrava Projeto Coreográfico, componente curricular da última etapa do curso, momento em que os alunos precisam montar, junto com a professora, o trabalho final.
“Eu propus que o trabalho dos alunos pudesse dialogar com a Paralelo Cia. de Dança, que é a minha companhia. Dessa forma, além de ser um projeto pedagógico, também ganharia força na divulgação e ampliaria o alcance artístico”, detalha.
Sinestesia pulsante
O ponto de partida da pesquisa foi a ideia de “pulso”, tanto no sentido biológico quanto simbólico. Observar o próprio corpo foi a provocação inicial de Joyce à equipe, que levava os dedos ao punho a fim de sentir a pulsação interna e transmutar, a partir disso, o ritmo das batidas arteriais em movimento. A transferência sinestésica de sístoles e diástoles para a performance corporal desenhava-se em um tronco que se mexia, ou um joelho em flexão e, assim, o trabalho tomava forma visual.
Ademais, a transposição entre interior e exterior atravessa todo o espetáculo. A coreógrafa descreve o processo como uma tentativa de “converter o pulso interno em um pulso externo”, traduzido em movimentos coletivos e individuais.
“Eles [os alunos-atores] estão o tempo inteiro muito juntos no palco, passando por camadas de identificação de pulsos individuais e pulsos coletivos. Estão juntos construindo, mas tem momentos em que eles se separam, como se estivessem construindo uma cartografia de pulsos singulares e coletivos”, afirma.
Tecendo os movimentos coreográficos, o grupo pôde refletir sobre microrrelações empreendidas ao longo da vida. Uma tal ligação entre corpo e cosmos, segundo Joyce, também guiou o pensamento estético do espetáculo. “Os físicos dizem que nós, seres humanos, somos o universo manifestado. As configurações que existem fora de nós, na verdade existem dentro de nós também”.
Enquanto conversava com a reportagem por telefone, Joyce deu exemplo vivo do método abdutivo da pesquisa. Ao olhar para uma árvore na UFPB, a coreógrafa apontou a semelhança imagética existente entre o desenho rizomático do vegetal e a disposição reticular dos alvéolos pulmonares, ou mesmo do formato do cérebro. Dessa maneira, o trabalho acabou pautando-se pelo biológico, bem como pela criação de imagens a partir da performance, em diálogo interno-externo.
Na dança dos astros
A noção de nebulosa surgiu da reflexão sobre explosões e rastros, fruto dos estudos de doutoramento de Joyce em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Jorge Albuquerque, um senhor de 83 anos, astrofísico, fora seu professor e abordara a Teoria Geral dos Sistemas para poder falar de improvisação na dança.
“Falava de buraco negro para conversar com a gente sobre contato e improvisação”, diz ela, que enxergou na experiência a fagulha de pensar a transposição entre bólides e sistemas internos ao humano.
“Ao olhar para fora, comecei a perceber esse lugar das nebulosas. A gente não vê a explosão, o que vemos é o que sobrou dela. Eu tava muito interessada em criar um movimento que se pautasse pelo rastro da coisa que explode, porque a gente é feito das colisões que temos na vida. Essas colisões podem ser os encontros amorosos, profissionais, uma troca de olhares na rua com um desconhecido. Ali já é uma microexplosão”, descreve Joyce, preocupada em partir do pulsar sem descurar dos rastros deixados pelos indivíduos em suas relações interpessoais.
A pesquisa coreográfica também dialoga com obras de autores contemporâneos, como o filósofo sul-coreano-alemão Byung-Chu Han, bem assim obras que discutem corpo, tecnologia e presença, como Adeus ao Corpo, do sociólogo francês David Le Breton, e Manifesto Ciborgue, escrito pela filósofa estadunidense Donna Haraway.
“Estamos tão apáticos diante da vida que a gente não tá conseguindo mais se amar. Falando assim parece um pouco clichê, mas vivemos um momento de muito engodo”, considera a artista. “Estamos cada vez mais mergulhados no universo eletrônico, onde o corpo parece não ter importância. Mas tudo atravessa o corpo. Essa reflexão foi fundamental para pensar o espetáculo como um coletivo que emerge do individual e retorna ao coletivo em busca de saídas para as microcatástrofes cotidianas”.
Além dos 13 bailarinos, o grupo inclui ainda os profissionais Fabiano Diniz (design e execução de luz), Kécia Andrade (fotografia) e Topázio Kariri (sonoplastia), entre outros. Na trilha sonora reverberam nomes como Chico Correia, Arthur Joly, Trent Reznor, Schubert, Litz e Chico César.
Joyce, inclusive, estreou como atriz na telona, participando do longa-metragem Malaika. Dirigido pelo paraibano André Morais, o filme foi exibido domingo (21) em Biarritz, no Sul da França. “Foi uma experiência intensa. O filme trata de um dia na vida de uma jovem albina e das relações que se estabelecem em uma casa de trabalho. A direção de André é muito sensível e o roteiro tem grande potência”, comenta.
Lembrando da dança dos astros com os alunos, a coreógrafa atesta que a produção da montagem foi marcada por aproximação genuína entre ela e os estudantes. “Não era como trabalhar com pessoas que conheço há vinte anos. Era um grupo novo, formado em junho, que teve quatro meses para construir algo junto. O interessante foi perceber que o que criávamos não estava distante de quem eles eram. Esse foi o maior aprendizado”, relata.
Em suas aulas, Jorge Albuquerque falava das estrelas, fazia cálculos matemáticos e provava por a + b que, caso tivéssemos de habitar um outro planeta, com diferentes regimes gravitacionais, os profissionais da dança levariam vantagem. Nebulosa pretende demonstrar esse ponto a partir de hoje.
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*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de setembro de 2025.