por Joel Cavalcanti*
Nos últimos sete anos de vida de Nelson Freire, um dos maiores pianistas de todos os tempos – morto no início deste mês, a amizade com a pianista paraibana Juliana Steinbach havia se estreitado bastante. Eles trocavam partituras, dividiam o piano tocando a quatro mãos em concertos dentro e fora do país e faziam parte do vínculo familiar um do outro. Radicada na França, hoje ela começa uma turnê pelo Sudeste, em que todas as notas serão em homenagens ao gênio da música, conhecido por seu virtuosismo e pela sua sensibilidade poética.
Iniciando na Sala São Paulo, na capital paulista, Juliana se apresenta às 18h acompanhada do quarteto Osesp, com peças franco-brasileiras e alemãs no repertório. Depois ela ainda segue, no dia 4, para a Sala Cecília Meirelles, no Rio, local da última apresentação de Nelson Freire. Com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e a presença de parentes do mineiro de Boa Esperança, a pessoense toca o concerto de Saint-Saëns, nos dias 9 (com transmissão pelo YouTube da orquestra) e 10 de dezembro. A temporada se encerra no dia 29 de dezembro com o concerto ‘O Imperador de Beethoven’, no Instituto Baía dos Vermelhos, em Ilhabela (SP), onde ambos se apresentaram tantas vezes.
O primeiro encontro de Juliana Steinbach com Nelson Freire aconteceu em 1999, em Buenos Aires, em um episódio insólito para a pianista. Ela havia sido furtada nos bastidores do Teatro Colón e ficou sem os passaportes brasileiro e francês. Nelson usou, então, de sua influência e, com apenas uma ligação para o embaixador, providenciou para o dia seguinte os novos documentos para a jovem de 20 anos. Decorridos 15 anos desse encontro, eles começaram a desenvolver a amizade que marcaria a trajetória afetiva e profissional de ambos. “Foi uma amizade baseada na música, inicialmente, e com a grande chance que eu tive de acompanhar os últimos sete anos de auge da carreira dele. Foi um período que ele atingiu um nível excepcional e histórico do piano internacional”, destaca a paraibana.
A conexão se dava apesar da diferença de 35 anos de idade que separava os dois. Todas às vezes que Nelson se apresentava na França, após os concertos, ou quando Juliana vinha ao Brasil, eles se visitavam. Costumavam comparar os repertórios e sugerir composições. Nelson sempre levava consigo partituras de música brasileira para que a Juliana pudesse aprender com o mestre. “Foi um privilégio ter um diálogo musical com um gigante como Nelson Freire”, diz ela sobre um dos cinco maiores intérpretes de Beethoven, Chopin e Mozart do século.
A relação saltou dos pianos para se tornar familiar. Nelson acompanhou o nascimento da filha de Juliana, hoje com 4 anos. A menina recebeu o nome de Olympe Guiomar, em uma homenagem a Guiomar Novaes (1894-1979), pianista brasileira muito admirada por Nelson. “Ele incluiu a gente também muito naturalmente na vida familiar dele. Nelson queria que fôssemos um ciclo muito próximo da vida dele”, revela. A amizade entre os dois suplantava a figura que Juliana tinha de Nelson como de um tutor, ou de padrinho, como se refere a ele. “A vida de um pianista internacional é muito solitária. Quando você encontra pessoas com quem você possa dialogar de um jeito muito simples, com quem você possa ser quem você é, é realmente um presente”, considera ela. Eles também realizavam programas a quatro mãos, quando os dois pianistas dividem o instrumento ao mesmo tempo. “Isso foi realmente um privilégio, porque o Nelson Freire só tocava em duo com a Martha Argerich. Esse foi um imenso sinal de confiança comigo”, conta Juliana sobre a pianista argentina e grande amiga de Nelson.
Os pianistas chegaram a dividir alguns recitais no Brasil, em Ilhabela (SP), e em um festival criado por Juliana, na Borgonha, centro-leste da França. Foi durante a apresentação no Litoral Norte do Estado de São Paulo que Juliana teve mais uma demonstração da generosidade de Nelson Freire. O músico costumava tocar durante o bis a peça ‘Melodia’, da ópera ‘Orfeu e Eurídice’, de Christoph Willibald Gluck e Giovanni Sgambati, tal qual fazia Guiomar Novaes, a quem ele sempre homenageou. Mas, naquela noite, Nelson não tocou a sua música como de costume. “Eu fui vê-lo no camarim, e perguntei porque ele não havia tocado Gluck. Ele me respondeu: ‘Deixei para você’”, lembra ela. Na sua apresentação no Rio de Janeiro, Juliana manterá a tradição de Nelson Freire e tocará ‘Orfeu e Eurídice’. “Esse será meu código secreto de admiração e carinho entre as gerações de pianistas brasileiros”, confidencia.
Os últimos dois anos de Nelson Freire foram de bastante dificuldades. O maestro sofreu um acidente enquanto caminhava pela calçada da praia, no Rio de Janeiro, em outubro de 2019, e quebrou o ombro. Esse evento viria a ser decisivo na vida dele, que não conseguiu recuperar plenamente as suas capacidades pianísticas. Os meses que antecederam sua morte foram de grande sofrimento e de isolamento acentuado causado pela pandemia. Um afastamento longo demais para quem amava o piano acima de tudo. “A gente continuou se falando por telefone, mensagens, e-mails, mas pouco a pouco ele foi se isolando cada vez mais. Nas últimas semanas eu quase não tive mais contato com ele. Um músico como Nelson Freire vive na música. A música é a sua vida inteira. Existem poucas alegrias e realizações fora disso. Claramente, isso afetou de maneira vital o cotidiano dele nos últimos meses”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 28 de novembro de 2021