Linaldo Guedes
O concerto-recital de Geraldo Vandré, nos dias 22 e 23 de março, na Sala de Concertos Maestro José Siqueira, do Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa, foi acertado em 2015, quando o artista esteve em João Pessoa para ser homenageado no FestAruanda - festival de cinema. No festival, ele foi convidado pelo governador Ricardo Coutinho, mas, adoeceu e não pode vir antes. “Na verdade, o concerto não está vinculado à conjuntura. Foi um compromisso anterior ao triste espetáculo que vive o nosso país. É mais um concerto com um grande artista brasileiro, nascido na Paraíba. Um homem que não quis colocar sua arte a serviço da cultura de massas. Na verdade, esse foi o grande ato subversivo de Geraldo Vandré, já que, segundo ele mesmo, jamais militou politicamente”, comenta o secretário Lau Siqueira, que esteve na linha de frente dos contatos com Vandré.
Para Lau, de certa forma, até mesmo os setores mais a esquerda que assumiram governos, se renderam para a cultura de massas. “Olha, por exemplo, como está o cenário musical brasileiro desenhado pela mídia! Esse caos não começou hoje. A importância do concerto se dá pela magnitude da obra de um artista que o tempo todo transgrediu seu próprio processo criativo. Começou compondo com Carlos Lira, ensaiando passos na Bossa Nova, passou pelas canções nordestinas, pelas canções de protesto, canções de amor. Enfim, gravitou livremente na música brasileira e bebeu nas melhores fontes”, analisa.
Lau Siqueira lembra que Vandré gravou na França um disco que é referencial para a discografia brasileira, “Das Terras de Benvirá”, onde, mais do que os anteriores, mostra a força da palavra na sua música. Um disco com alto teor poético (“O anel que tu me deste / eu guardei pra me ajudar / construi numa viola / de madeira o teu altar / o amor que tu me tinhas / eu roubei pra me salvar”.
- Nesse disco, existe “Sarabanda”, uma música experimental que bebe, imagino, até mesmo na fonte dos ritmos e danças renascentistas, integrando-as aos elementos de formação dos ritmos nordestinos. De lá para cá, ele deu um salto absurdamente inesperado incursionando pela música erudita. Segundo ele, “nada mais subversivo que um subdesenvolvido erudito”. Vandré é um erudito por natureza. Um artista que guarda na memória longos poemas de Vinícius, José Régio, Carlos Pena Filho e dele mesmo. Um cara que recitava Virgílio no original. Como ignorar tamanho patrimônio artístico e humano que a Paraíba ofereceu e oferece ao Brasil? Isso independe da conjuntura. Isso é história da arte brasileira e paraibana contemporânea – acrescenta.
Lau Siqueira observa que 50 anos após ter cantado pela última vez no Brasil, Geraldo Vandré retorna na contramão das megaproduções bilionárias e medíocres de amplo suporte midiático. “Rebolados que oferecem para a juventude como música brasileira. É como se estivéssemos perdendo a delicadeza, a poesia e, “das terras de Benvirá”, viesse um mestre para reordenar caminhos. Temos artistas fantásticos em todos os gêneros que são sumariamente esquecidos pelas produções da cultura de massas e nem fariam sentido nos modelos que estão aí sendo empurrados como um supositório de horrores na população. Algo que vem sendo exportado como “música brasileira”. Isso é um crime. Ora, somos da terra de Ari Barroso, Chiquinha Gonzaga, Chico Buarque, Geraldo Vandré e outros que acabam relegados por essa máquina demente, ideológica e corrupta que domina os mercados formadores da cultura de massas.
Vandré é um artista que soube o quanto era importante dizer não ao caos que se desenhava já em 68, com máscaras de multiculturalismo. O único grande artista da sua geração que não voltou aos palcos após a abertura política. Acho que essa provocação de Geraldo Vandré, juntamente com a inquietação permanente do seu espírito criativo, é a sua grande contribuição para a cultura brasileira”, enfatiza.
Vandré esteve recentemente na Paraíba. Segundo Lau Siqueira, o músico ficou o tempo todo em João Pessoa, desde dezembro, anonimamente. - Andamos por diversos lugares e eu sabia que as pessoas sequer imaginavam que ele estava ali. Ele veio com Darlan Ferreira, que trabalha com ele há 15 anos e trata Geraldo com um carinho e cuidado impressionante. Quase como um irmão mais novo. Tive o privilégio de ouvir Vandré recitando muitos poemas. Ele tem uma expressividade interpretativa impressionante. Lembro-me de estarmos passando pela Praia de Manaíra e ele, apontando para o mar, se referir aos versos que diziam do “céu fundo e o mar bem largo” na canção “Terra Plana” e que, na verdade, revelam a sua imensa identidade e seu amor pela Paraíba. Tive a oportunidade de ouvir muitas das suas reflexões, suas abordagens e memórias daqui e do exílio. Revelações da sua juventude na Paraíba, de onde saiu aos 17 anos. Coisa que muitos dos seus biógrafos ou especuladores adorariam saber, mas não tiveram nem terão a oportunidade. Eu respeitava o artista e aprendi a respeitar o homem que ele é.
Posso dizer que para além do Vandré artista, do ícone, conheci e convivi com o cidadão Geraldo. Um sujeito extremamente generoso, amoroso com a memória da família e dos pais. Um cara muito bem humorado, exímio contador de piadas. Um erudito sem a arrogância de muitos eruditos – detalha.
Durante a estadia de Vandré na Paraíba, foi anunciada também a reedição do livro de poemas “Cantos Intermediários de Benvirá”. Em que pé está este projeto? Bem, a obra receberá edição da Editora A União, como ficou definido após encontros do artista com a superintendente do jornal, Albiege Fernandes, com Walter Galvão e Felipe Gesteira. A data do lançamento do livro, que acontecerá provavelmente na Academia Paraibana de Letras, será definida após o concerto.
Por coincidência do destino, Geraldo Vandré, fruto dos festivais de música dos anos 1960, foi presidente de honra do júri do Festival de Música realizado pelo Governo do Estado em janeiro deste ano. Ele entregou o prêmio para Tom Drummond, que ficou em segundo lugar. “Olha a coincidência: em 68 ele também ficou em segundo, quando Chico Buarque e Tom Jobim venceram. Foi para o palco entregar prêmio e pode sentir de perto o carinho e o respeito do público da Paraíba. Foi emocionante”, destaca Lau. No show de encerramento, Chico Cesar e o público cantaram de forma entusiasmada “Pra não dizer que não falei das flores”. “Vandré é um símbolo dos festivais. Os festivais são uma das marcas da democracia. Até mesmo pelas naturais polêmicas que geram. Tanto que a música vencedora do nosso festival acabou provocando um alvoroço desproporcional pelo fato de questionar a visibilidade das oligarquias. Foi tudo muito simbólico, grandioso, emocionante. Momento raro da cultura paraibana e brasileira”, comemora.
Pergunto ao secretário de Cultura qual o principal legado de Vandré para a música e a arte brasileira. Lau Siqueira responde que são muitos:
- Mas, vamos destacar o que deveria mover a arte e os seus pilares: a apreensão de conhecimentos em diversas fontes para a construção da sua identidade artística. O respeito às tradições da cultura universal. O olhar para a realidade e para as cátedras. Vandré é um exímio leitor do mundo. Entretanto, muito mais que isso, considero que a sua inquietação é o grande legado.
Este é o fator que estrutura a sua obra dos anos 60 até hoje. É a essência do seu fazer artístico. Para os movimentos sociais da cultura ele deixa um legado de coragem. Coragem de quem não se rendeu às lendas criadas a seu respeito, ao mito endeusado com hipocrisia. Ele nunca compactuou com a cultura de massas e com as intervenções do imperialismo cultural. Não explorou comercialmente a grandiosidade da sua obra e a representatividade da sua imagem. Preferiu resguardá-la, resguardar-se, aquietar-se, e deve ser respeitado principalmente por isso. O legado que ele deixa é de muita arte, muita coerência e muita dignidade. Existe uma imensa obra ainda inédita porque nesse tempo todo ele não parou de compor nem de escrever poemas.