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Leia a entrevista na íntegra com Laurentino Gomes

publicado: 24/10/2019 04h00, última modificação: 23/10/2019 12h30
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- Foto: Foto: Vilma Slomp

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"Eu diria que tenho uma história de amor tardio, porém fulminante, com o Estado da Paraíba”, afirma Laurentino Gomes

por Guilherme Cabral

 "Eu diria que tenho uma história de amor tardio, porém fulminante, com o Estado da Paraíba. Desde que lancei 1808, doze anos atrás, eu tinha já percorrido quase todo o Brasil, sem nunca ter encontrado a oportunidade de vir a Paraíba". A confissão foi feita para o jornal A União pelo escritor e jornalista paranaense Laurentino Gomes, que chega nesta quinta-feira (24) ao Estado para cumprir agenda de lançamento do seu novo livro, cujo título é Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares (Globo Livros, Rio de Janeiro, 480 páginas, R$ 49,90), o primeiro de uma trilogia dedicada à história da escravidão no Brasil.

A agenda do escritor começa por João Pessoa. Às 15h30 desta quinta (24), ele será agraciado com o título de Sócio Honorário do Instituto Histórico e Geográfico e Geográfico Paraibano (IHGP), durante reunião da entidade. À noite, a partir das 19h, autografa sua nova obra na Livraria Leitura, no Manaíra Shopping.

No roteiro de visitas, também estão incluídas participações no Festival Literário de Bananeiras, nesta sexta (25), na 1ª Feira Literária de Areia (Flareia) no sábado (26) e um bate-papo e autógrafos em Caiana dos Crioulos, comunidade quilombola na cidade de Alagoa Grande, no domingo (27).

Leia a íntegra da entrevista, publicada na edição impressa de quinta-feira (24) do Jornal A União.

P - É a primeira vez que o senhor vem lançar um livro na Paraíba? Caso seja a primeira vez, qual sua expectativa para esse lançamento? Caso não seja, o que espera da sua vinda à Paraíba para cumprir agenda de vários lançamentos, inclusive em João Pessoa?

R - Eu diria que tenho uma história de amor tardio, porém fulminante, com o Estado da Paraíba. Desde que lancei 1808, doze anos atrás, eu tinha já percorrido quase todo o Brasil, sem nunca ter encontrado a oportunidade de vir a Paraíba. Tudo isso mudou de repente graças à intervenção do jornalista e radialista Eraldo Luís, da Rádio Integração de Bananeiras, hoje meu amigo pessoal. Em 2017, ele me entrevistou por telefone quando eu estava em viagem de pesquisa em Angola. No final da conversa, contou-me que existia comunidades quilombolas importantes no interior da Paraíba, que mereciam uma visita. Aceitei o convite e no ano seguinte fui a Caiana dos Crioulos e Cruz da Menina, ambas na Serra da Borborema, passando antes por João Pessoa, Bananeiras, Areia, Dona Inês e Alagoa Grande. Resultado: fui acolhido de forma tão calorosa pelos paraibanos que decidi fazer não apenas um, mas quatro lançamentos de Escravidão aqui. Nenhum outro Estado terá um número tão grande de eventos nesta minha atual turnê nacional, nem mesmo o meu Paraná, onde fiz apenas três lançamentos. Isso parece confirmar aquela antiga máxima dos Evangelhos: os últimos serão os primeiros!”

P- O que o acha dessa iniciativa da Feira Literária, a exemplo da cidade de Areia, que é uma iniciativa já disseminada aqui no Estado, pois existe em outros municípios, como Boqueirão e Bananeiras?

R – Essas iniciativas são fundamentais para incentivar a leitura no Brasil. Infelizmente, o brasileiro lê pouco, apenas dois exemplares per capita por ano, descontados os livros didáticos exigidos nas escolas. É quase nada quando comparado com a média de oito exemplares em países como Portugal e Espanha, cinco no Chile e na Argentina. Um país que não lê tem pouco futuro. Por isso, incentivar a leitura no Brasil é uma tarefa fundamental e fico muito feliz em ver que a Paraíba tem tomado a vanguarda nessa área, especialmente em cidades do interior, como Bananeiras, Boqueirão e Areia, que nem sempre tem acesso aos eventos culturais que fazem o circuito das capitais.

P -  Gostaria que falasse sobre esse novo livro, Escravidão, pois já sei que é o primeiro de uma trilogia. 

R – Na primeira página deste livro, eu uso como epígrafe uma frase do Padre Antônio Vieira no final do século 17. “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”, afirmava ele. Essa frase ajuda a dar o tom da nova trilogia. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental. Recebeu quase cinco milhões de cativos africanos, cerca de 40% do total de 12,5 milhões embarcados para as Américas. Como resultado, tem hoje a maior população negra do mundo, com exceção apenas da Nigéria. Foi também o país que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir o cativeiro, pela Lei Áurea de 1888. A escravidão foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade. O primeiro volume da trilogia tem seu foco principal na África. Cobre um período de, aproximadamente, 250 anos, entre o início das incursões e capturas de escravos pelos portugueses na costa da África, em meados do século 15, até o final do século 17. Traz também alguns capítulos sobre a escravidão em outros períodos da história da humanidade, como na Grécia Antiga, no Egito dos faraós, no Império Romano e nos domínios do islã e na própria África antes da chegada dos portugueses.

P - Peço que me fale como foi a experiência de pesquisar aqui na Paraíba para poder escrever esse novo livro. Qual foi seu objetivo com tal visita? Quando foi essa visita e durou quanto tempo? O senhor passou por onde? Comunidade quilombola Caiana dos Crioulos, em Alagoa Grande, e Areia?

R - A região Nordeste foi o berço da escravidão indígena e africana no Brasil. O uso da mão-de-obra cativa chegou logo nas primeiras décadas do século XVI junto com a cultura da cana-de-açúcar nos ricos e férteis solos de terra escura, repleta de sedimento orgânico, o chamado massapê. E continuou intensa nos séculos seguintes em outras atividades como a pecuária e o cultivo do algodão, do tabaco e do café. Portanto, para estudar a escravidão no Brasil é preciso começar primeiro pela África. Depois, pelos Estados da região Nordeste. Em 2018, enquanto começava a escrita deste primeiro volume de “Escravidão”, percorri diversas cidades e regiões da Paraíba. Visitei os quilombos de Cruz da Menina e o de Caiana dos Crioulos e as antigas regiões produtoras de cana-de-açúcar e café na Zona do Brejo, onde, curiosamente, as ideias abolicionistas já circulavam muito antes da Lei Áurea. Aprendi muito com essas visitas. Essas viagens me deram uma compreensão muito maior e mais próxima do que foi o fenômeno da escravidão no passado e do que é o seu legado ainda hoje.

P - Como analisa a importância histórica da comunidade paraibana Caiana dos Crioulos?    

R – Caiana dos Crioulos é um exemplo de organização e resistência entre as comunidades quilombolas brasileiras. No início de 2019, o Brasil tinha 3.212 comunidades quilombolas certificadas, com 1,2 milhão de moradores e ocupando cerca de um milhão de hectares, o equivalente a 0,11% do território nacional. Parece muito, mas a área é inferior à soma das dez maiores fazendas do agronegócio no país. A grande maioria dessas comunidades enfrenta graves dificuldades de sobrevivência. Nas minhas “rodas de conversa” em Cruz da Menina e Caiana dos Crioulos fiquei impressionado quando me contaram que, até bem pouco tempo atrás, muitos moradores ainda tinham medo de estranhos. As crianças eram orientadas a se esconder quanto ouviam barulho de motor de carro ou vozes desconhecidas. Hoje, frequentam escola, têm acesso a posto de saúde e outros serviços. Mas vivem assoladas pela seca. Observei que nessas comunidades quase não há homens adultos. Só mulheres e crianças. Os homens foram embora à procura de trabalho em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, Natal e outras cidades distantes. Alguns voltam regularmente para visitar suas famílias. Outros, nunca mais. A diáspora masculina é tão grande que Caiana dos Crioulos tem hoje uma sucursal ou filial em Pedra de Guaratiba, no Rio de Janeiro, onde os homens trabalham na construção civil. Fiquei bastante comovido ao ouvir as histórias dessas mulheres humildes, discriminadas, sofridas, mas muito fortes e guerreiras, que enfrentam com coragem, fé e determinação os grandes desafios da vida. Elas são um exemplo de determinação e esperança para todos nós brasileiros.

P - E os outros dois livros da trilogia, pode falar os títulos, de que vão tratar e quando pretende lançá-los?   

R - São três livros a serem publicados entre 2019 e 2021, um por ano, e compreendem uma série ensaios e reportagens de campo e, sempre que possível, procuram seguir uma ordem cronológica. O segundo livro concentra-se no século 18, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil e pela disseminação do cultivo de cana-de-açúcar, arroz, tabaco, algodão e lavouras e do uso intensivo de mão de obra cativa em outras regiões do continente. Num período de apenas cem anos, mais de 6 milhões de seres humanos foram traficados da África para as Américas, dos quais 2 milhões (um terço do total) só para o Brasil. O terceiro e último livro se dedica ao movimento abolicionista, ao tráfico ilegal de cativos, ao fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século xix e ao seu legado nos dias atuais. São também abordados, nos dois volumes finais da trilogia, temas como a família escrava, as alforrias, a escravidão urbana, as festas, irmandades e práticas religiosas, a assimilação, as fugas, rebeliões e os movimentos de resistência.

P - Qual sua avaliação sobre o Governo do presidente Jair Bolsonaro?

R - Durante a campanha eleitoral de 2018, fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Jair Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira, como os quilombolas, que ele chamou de “gordos e folgados”. Esse discurso de ódio e enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018, mas esperava que, passada a campanha eleitoral, o discurso, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo. Espero, portanto, que o presidente Bolsonaro deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais fracos, os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes.