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O grande mestre da dor de cotovelo

publicado: 14/03/2024 16h03, última modificação: 15/03/2024 11h30
A vida e a obra do compositor Lupicínio Rodrigues são temas de documentário que estreia hoje em João Pessoa
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Lupicínio Rodrigues, autor de grandes sucesso como ‘Nervos de aço’, ‘Volta’ e ‘Se acaso você chegasse’, sofreu com o racismo | Foto: Reprodução

por Andre Dib*

Entre os bons motivos para ir ao cinema esta semana, também traz um dos mais raros: assistir a um documentário brasileiro. Lupicínio Rodrigues - Confissões de um Sofredor estreia no circuito comercial, trazendo um olhar aprofundado sobre a vida e a obra do sambista gaúcho. Seu diretor, Alfredo Manevy, dedicou ao projeto nada menos do que cinco anos entre pesquisas e entrevistas que relacionam aspectos biográficos às músicas que fizeram a fama do compositor, como “Volta” e “Nervos de aço”.

De uma maneira geral, estamos falando de músicas de lamentação amorosa, também conhecidas como “dor-de-cotovelo”. Como diz Gilberto Gil, em depoimento para o filme, o samba canção de Lupicínio representa o blues brasileiro. Ou então, simplesmente “recalque”, simplifica o próprio Lupicínio, no início da narrativa, como consequência de decepções amorosas na juventude.

Vale ressaltar novamente o valor da pesquisa. Na verdade, três pesquisas: uma dedicada às imagens em movimento, outra para arquivos de rádio e fotos, e outra baseada na memória negra do interior do Rio Grande do Sul. Esta última traz ao filme a tridimensionalidade necessária para uma abordagem de Lupicínio em sua complexidade. A montagem é outro destaque, em um costura diferentes histórias, personagens e informações.

Chama a atenção as histórias de racismo vividas por Lupicínio, que como artista preto no Rio Grande do Sul teve que brigar para ser atendido em uma lanchonete, nunca se apresentou nos teatros de Porto Alegre, foi o primeiro preto a ser aceito como sócio do Grêmio. No entanto, talvez a história mais indignante seja a do plágio cometido pelo filme Dançarina Loura, produção norte-americana de 1945, que se apropriou da música “Se acaso você chegasse” sem pedir permissão ou ao menos citar o crédito. A música foi indicada ao Oscar no mesmo ano em que “Rio de Janeiro”, de Ary Barroso, por outra produção. Este último recebeu os créditos.

Após assistir ao documentário, a família de Lupicínio contratou um advogado para lutar pelos seus direitos. De acordo com o Manevy, eles tomaram a decisão de mandar uma carta para a Academia, pedindo reconhecimento póstumo. “Para minha surpresa a carta foi recebida e também foi abraçada por um advogado americano que lida com celebridades. Ele viu o filme e resolveu cuidar do caso pro bono.

É de suma importância que o cinema brasileiro conquiste espaço e o diálogo com o público, mesmo se tratando de documentários, que são filmes de menor lançamento, mas que tem o seu público, um público cativo
Alfredo Manevy

Agora cabe a academia decidir se vai ou não fazer esse reconhecimento”, diz Manevy. “Mas eu acho que a história em si já é muito rica e a mobilização que ela gerou e o debate que ela está gerando aponta numa direção que é importante, para que o Brasil valorize a sua música, não só do lado artístico mas também como potência econômica e diplomática. É justo que um grande autor como o Lupicínio tenha o devido reconhecimento”.

Com narração de Paulo César Pereio, Lupicínio Rodrigues - Confissões de um Sofredor chega aos cinemas após ser exibido em mais de vinte festivais brasileiros e estrangeiros, entre eles, o Fest Aruanda do Cinema Brasileiro, onde ganhou prêmios de melhor montagem, trilha sonora e uma menção honrosa pela força narrativa.

“É de suma importância que o cinema brasileiro conquiste espaço e o diálogo com o público, mesmo se tratando de documentários, que são filmes de menor lançamento, mas que tem o seu público, um público cativo”, diz Manevy. “Estamos em um momento em que o cinema brasileiro precisa se reconectar com a sociedade. Assim como a música popular cala fundo no coração do Brasil, o cinema precisa reconquistar esse espaço que foi perdido nos últimos 20, 30 anos e especialmente nos últimos três ou quatro anos de pandemia e de desgoverno da cultura”.

O filme conta com imagens preciosas do compositor e seus intérpretes: Elza Soares, Jamelão, Francisco Alves, João Gilberto e a geração da tropicália: Caetano, Gal, Jards Macalé, Bethânia e Gilberto Gil, este último, entrevistado em um dos salões da Academia Brasileira de Letras (importante resposta às questões raciais levantadas pelo filme). Ney Matogrosso, Arrigo Barnabé e Cazuza também estão lá, ainda que de maneira pontual. E faz falta a presença de Arnaldo Antunes, que nos anos 1990 fez uma versão punk para Judiaria. Não se pode ter tudo.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de março de 2024.