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Premiadas escritoras que vivem na Paraíba contam como a obra da “dama da literatura brasileira” serviu de impulso para o ofício de escrever

Lygia Fagundes Telles: uma inspiração para gerações

publicado: 05/04/2022 08h56, última modificação: 05/04/2022 08h56
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Foto: André Lessa/Estadão Conteúdo

por Joel Cavalcanti*

Foi um cartão-postal de Lygia Fagundes Telles que deu a Maria Valéria Rezende o aval do qual precisava para se tornar escritora. “Se não fosse ela, talvez eu nunca tivesse publicado nada”, revela a autora que completa 80 anos em 2022. Quarenta e cinco anos mais nova, Débora Ferraz compartilha da mesma inspiração: “A Lygia Fagundes Telles mudou a minha vida e eu nem tenho ideia do que seria se não fosse querer ser escritora”, ressalta a romancista e contista pernambucana radicada em João Pessoa. Integrante da Academia Brasileira de Letras, Lygia era considerada uma das maiores escritoras nacionais do século 20 e teve no desenvolvimento das personagens femininas e no engajamento na luta pela democracia e contra a censura as marcas inconfundíveis de uma vida dedicada à Literatura Brasileira.

Com uma excelência narrativa, a prosa da escritora paulistana, morta aos 98 anos de causas naturais, no último domingo (dia 3), se fundamentava no mergulho psicológico dos personagens sem se omitir de uma perspectiva subjetiva da realidade social brasileira. Dona de um estilo marcado pela elegância, a autora de obras com Ciranda de Pedra (1954), Verão no Aquário (1964) e As Meninas (1973), ela instava o leitor a pensar sobre a própria existência enquanto discutia as dissimulações das relações humanas. Foi abordando temas como a finitude da vida, os medos, as formas de amar e a sanidade mental que Lygia se tornou a primeira mulher brasileira a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura, além de ter vencido o Prêmio Camões, em 2005, e ter ganho algumas edições do Prêmio Jabuti.

“Maria Valéria, li seu livro inteiro, não apenas 10 páginas. Publique sim. Você é uma escritora séria. Não lhe escrevo mais longamente porque estou de malas prontas para partir para Paris. Um abraço, Lygia Fagundes Telles”. Essa era a senha que a autora de Vasto mundo precisava para se creditar como uma escritora. Manuscrito em uma bela caligrafia no cartão que trazia uma foto da Academia Brasileira de Letras, a mensagem era uma resposta a correspondência que Maria Valéria havia enviado a sua mestre, sem ter a certeza que aqueles textos jamais chegariam a sua destinatária, que era amiga de uma tia poeta que morava em Santos (SP).

Ela se valia dessa amizade para ter acesso sempre em primeira mão a tudo que era lançado por Lygia. Chamava atenção como cada livro da dama da literatura brasileira tinha uma estrutura diferente, mas sempre respeitando o lugar imaginativo do leitor. “A boa literatura é aquela que deixa espaço nas entrelinhas, que desafia o leitor. Há dois tipos de escritores: aqueles que ficam olhando para o espelho, e aqueles que olham pelas frestas, pelas janelas. E a Lygia é essa, que olha pelas frestas, que espia o que ninguém está olhando”, define a escritora vencedora do Prêmio Jabuti pelo romance Quarenta Dias (Alfaguara), em 2015.

Sempre espantava a paulista, que desde 1976 vive na Paraíba, como Lygia podia conhecer tão bem sobre os aspectos tão íntimos da condição feminina em consonância com os desafios de seu tempo. Enquanto muitas precisavam encontrar seu caminho no escuro, Lygia apresentava o mundo com uma capacidade analítica da qual não lhe escapava nada. “A gente escreve com uma consciência das contradições da sociedade e um olhar agudo para os invisíveis. Tem vários textos dela que ela olha para quem ninguém olha, de sua própria observação do mundo. Não é de ficar se escarafunchando dentro de si próprio”, diz Maria Valéria Rezende, traçando pontos comuns entre as preocupações que ambas possuem em seus ofícios. “Como as mulheres sempre foram deixadas de lado na literatura – a não ser recentemente –, ela e a Clarice Lispector conseguiram romper isso. Elas são as que abriram as portas”, complementa.

Continuam passando muitas mulheres por essas portas. Uma delas é Débora Ferraz, que viu através de um volume fininho na biblioteca escolar o livro de contos Venha ver o pôr do sol’(1987) abrir um mundo inteiro de novas possibilidades para si. “O momento definidor da minha vida veio a partir desse livro. Foi aí que eu pensei que aquilo era a melhor coisa que eu já vi feita no mundo”, lembra a autora de Enquanto Deus não está olhando (Record, 2014), vencedor do Prêmio Sesc e do Prêmio São Paulo de Literatura. Sobre esse romance, o professor Alfredo Monte, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, assemelhava a personagem Érica, da obra de Ferraz, com Virginia, de Ciranda de Pedra, e Raíza, de Verão no Aquário, ambas obras de Lygia Fagundes Telles.

“Ela é uma escritora que não se permite ser ingênua com relação aos próprios personagens, e talvez eu tenha sido muito influenciada nesse sentido”, confessa a escritora, que também é doutora em escrita criativa pela PUC-RS e oferta cursos e oficinas sobre estruturação de romance de ficção e contos sempre referendando o estilo de Lygia como um modelo a ser estudado e apreendido por seus tutorandos. “Lygia deixou um presente imenso para a gente, e quem ainda não leu deveria ler imediatamente”, orienta Ferraz, indicando a mesma obra que teve o primeiro acesso aos 12 anos de idade como uma excelente porta de entrada para Lygia. “Leio esse livro hoje, aos 35 anos, e ele me dá o mesmo arrepio”.

As duas gerações diferentes de escritoras que encontraram na Paraíba o local para “nascer” e desenvolver suas carreiras literárias só divergem quando o assunto é o risco que enxergam de um possível apagamento da autora tão fundamental para suas vidas. Débora Ferraz teme que a obra de Lygia se perca na história. “Corre-se esse risco, sim. O que a gente tem que fazer é ler e falar para as outras pessoas como é bom. Eu tento me dar esse encargo, que é um prazer, mas a gente precisa fomentar a leitura dessa gigante”, defende. Com tranquilidade na fala e uma estante abarrotada de livros de Lygia Fagundes Telles, que se equilibram nas prateleiras quase que por mágica, Maria Valéria Rezende não tem dúvidas: “Ninguém a esquece mais. Ela escreveu coisas fundamentais. Se você quiser compreender a história do Brasil nos últimos 70 anos, você tem que ler Lygia Fagundes Telles”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 05 de abril de 2022