Notícias

literatura

Memórias acadêmicas

publicado: 11/03/2025 09h38, última modificação: 11/03/2025 09h38
Joana Belarmino lança o e-book “A Escrita dos Dias”, contando sua relação com a deficiência visual e os desafios enfrentados como jornalista e professora

por Esmejoano Lincol*

Joana Belarmino transformou em livro o memorial escrito para sua progressão profissional na UFPB | Foto: Evandro Pereira

Os textos desenvolvidos para o ambiente acadêmico tendem a ser mais sisudos graças ao rigor científico que se pretende ter. Um dos produtos que foge a essa regra é o memorial, utilizado em processos seletivos e na progressão de docentes. Se na forma ele ainda precisa manter alguma austeridade, o seu conteúdo pode seguir por um caminho bem mais leve. A professora aposentada Joana Belarmino transpôs para seu novo livro o memorial que desenvolveu para a defesa de sua titularidade na Universidade Federal da Paraíba (UFPB): A Escrita dos Dias –  As Infinitas Lições do Saber, já disponível para leitura gratuita pela editora Encontrografia, recorda sua trajetória para além da academia.

A defesa do memorial em outubro de 2021 fez com que Joana obtivesse sua última progressão funcional — de docente associada, tornou-se titular no curso de Jornalismo, no Campus 1 da instituição, cargo no qual se aposentou em 2022. Participaram da banca, à época, os professores Sandra Moura e Pedro Nunes Filho, ambos da UFPB; Alfredo Vizeu e Paulo Cunha, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Carlos Eduardo Franciscato, da Universidade Federal de Sergipe (UFS); e Virgínia Kastrup, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O texto de Joana endereçado à banca, por sua vez, não se detém apenas na apresentação de seu currículo junto à UFPB, cujo vínculo teve início em 1994. O memorial parte, na verdade, de sua infância na cidade pernambucana de Itapetim, onde nasceu: foi lá que começou a explorar o mundo a partir de sua realidade, enquanto pessoa com deficiência visual. Em razão de uma condição genética, seis de seus 12 irmãos também nasceram cegos. “Me lembro de sentir uma imensa inveja dos pássaros e dos insetos. Eu sabia da presença deles pelos zumbidos perto de mim. Eu queria voar com eles”, evoca.

Joana atribui à sua teimosia o fato de ter enveredado pelo Jornalismo. Ao se mudar para a capital, com a família, no fim dos anos 1970, fez vestibular e ingressou no recém-criado curso de Comunicação Social, contrariando seus então educadores da escola especial, que julgavam não ser possível uma pessoa com deficiência lançar-se como repórter.

”Já durante o curso, tive oportunidade de trabalhar como freelancer no jornal semanal O Momento. Formei-me em agosto de 1981 e, 15 dias após a formatura, fui convidada para uma experiência de trabalho no jornal O Norte, dos Diários Associados”, recorda.

O memorial, que foi reproduzido em sua integralidade em A Escrita dos Dias, também traz um capítulo sobre a condição da pessoa com deficiência. Ela incluiu na narrativa situações-chaves, a exemplo de quando aprendeu a ler, em braile, ao precipitar sozinha uma associação de palavras.

“Ser cego é ter uma experiência de duas faces. Tem a face interna da cegueira, essa é de cada pessoa cega. Às vezes é trágica, às vezes é bela. Há também a face social da cegueira, a externa, aquela que começa no olhar do outro. É essa face que prejudica a face interna do ser cego”, pontua Joana sobre o preconceito. 

Desafios

A carreira acadêmica de Joana Belarmino foi sendo construída paulatinamente — a princípio em concomitância com o trabalho de repórter. A partir do mestrado em Ciências Sociais, no início dos anos 1990, dedicou-se totalmente ao ofício de professora. O processo da defesa da titularidade levou seis meses, tempo que tomou para reunir os documentos comprobatórios e redigir o memorial.

“A Escrita dos Dias” está disponível gratuitamente apenas em versão digital | Imagem: Divulgação

“Esse tipo de texto mantém uma linearidade, vamos dizer assim. Começa nas suas origens e vai descendo até a profissão universitária. Claro, a gente lê outros memoriais, para ter uma base. Mas ele permite que transitemos por uma linguagem que seja, em certa medida, literária”, explica.

Rememorar o passado a fez ter contato com lembranças dolorosas e momentos desafiadores, como a perda do irmão, José Belarmino, durante a pandemia, seu grande parceiro na vida pessoal e universitária, e o divórcio, a partir do desgaste do casamento de pouco mais de uma década.

“Além disso, houve desafios dentro da profissão do jornalismo, como o período em que o jornal O Norte fechou, veículo onde eu trabalhei durante quase nove anos, e outras escolhas complexas que eu tive de fazer ao longo dos anos, como ir para São Paulo [cursar doutorado] e deixar minhas filhas aqui, com o pai delas”, ressalta.

Para Joana, a defesa do memorial foi um momento de grande expectativa, mas de muita alegria. Ela afirma que, mesmo à distância — já que a banca foi realizada de maneira remota, em razão dos protocolos de isolamento em vigor —, sentiu-se acolhida pelos colegas. Todavia, o seu trajeto na universidade também contou com adversidades.

“Não tenho um número exato, mas sei que professores com deficiência são pouquíssimos — na minha época, éramos eu e outra colega, no Centro de Educação. Sempre digo que o maior desafio é o professor ser reconhecido na sua diferença dentro da universidade”, pondera.

Ainda que esteja aposentada, ela continua a colaborar como pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPJ-UFPB) e como parecerista ad hoc (eventual) e permanente em algumas revistas nacionais, mantendo em eterna construção o memorial que traz a público agora.

“Ainda sou convidada para congressos e bancas de defesa. O professor universitário nunca se desliga totalmente das atividades, né? Vamos sempre que somos convocados para alguma coisa. É o contributo que damos ao Ensino Superior, que, no meu caso, me acolheu durante 28 anos”, conclui.

Acesse o livro gratuito para baixar

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de março de 2025.