“A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado”. O trecho extraído do livro Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, expressa a temática principal da obra que se debruça sobre a trajetória de uma família brasileira de classe média, abençoada com alguns privilégios, mas, infelizmente, marcada por tragédias lacerantes. A adaptação homônima para o cinema, conduzida pelo diretor Walter Salles e representante brasileiro na disputa pela indicação ao Oscar de filme internacional, estreia hoje nos cinemas locais, retornando a um passado triste do país, mas trazendo, ainda, uma perspectiva de futuro brilhante para o audiovisual do Brasil.
O livro de memórias no qual o longa se baseia remonta a história da família do escritor e jornalista paulistano Marcelo Rubens Paiva. Seu pai, que também se chamava Rubens (papel de Selton Mello), político de oposição ao Regime Militar, foi perseguido pela Ditadura, preso no início dos anos 1970 e assassinado depois de uma longa sessão de torturas. Sua morte permaneceu nebulosa por quase três décadas, período em que sua esposa, Eunice (interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, em fases distintas), cuidou dos cinco filhos do casal e consolidou-se como uma importante voz na batalha contra a repressão política e em prol das famílias de presos e desaparecidos.
O atestado de óbito de Rubens foi emitido pelo Governo Federal em 1996, mas apenas em 2014 a Comissão Nacional da Verdade, colegiado que investiga as violações aos direitos humanos durante o Regime, deu maiores esclarecimentos sobre o fato — seu assassinato foi supostamente cometido pelo ex-tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, vinculado ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPor), hoje falecido. Dois outros militares envolvidos no caso e que ainda estavam vivos à época foram indiciados. Em abril deste ano, o caso foi reaberto pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC)).
Ainda Estou Aqui é o primeiro filme original do Globoplay, plataforma de streaming da TV Globo, em parceria com outras produtoras locais, como a Conspiração Filmes. Internacionalmente, o filme conta com distribuição da Sony Pictures. Se, no livro, a história da família Paiva é contada em tom de panorama, narrado por Marcelo Rubens Paiva, quem assume o protagonismo no filme de Salles é Eunice. Mas, assim como na biografia escrita, outra de suas lutas é abordada na adaptação audiovisual: por 14 anos, a matriarca dos Paiva enfrentou os sintomas do Alzheimer, doença que lhe apagou aos poucos o “truque da memória”, como diz trecho da obra, e que lhe tirou a vida, em 2018.
Circulando, a princípio, em mostras de cinema estrangeiras, o filme acumulou prestígio antes do lançamento em solo nacional. No Festival de Veneza, Murilo Hauser e Heitor Lorega foram premiados pelo roteiro. O longa ainda venceu dois outros troféus secundários.
Por esse motivo — mais do que justo —, foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais (ABCAA) como representante do Brasil no Oscar do ano que vem. Os palpites divulgados por veículos de imprensa americanos também colocam o filme, Fernanda e Selton como possíveis indicados na premiação mais importante do cinema.
Algo a dizer
Vera Paiva, uma das filhas de Rubens e Eunice, dá continuidade ao legado dos pais — além de psicóloga e professora titular da Universidade de São Paulo (USP), ela faz parte da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao MDHC. Em Ainda Estou Aqui, as atrizes Valentina Herszage e Maria Manoella dão vida a esse personagem real.
“Não só Vera como toda a família Paiva estiveram muito presentes durante a feitura do filme. Eles são a nossa maior inspiração. Vera assistiu o longa em Veneza ao meu lado, foi demais”, revelou Valentina, em entrevista ao jornal A União.
Com uma carreira em ascensão na TV e no streaming (ela interpretou a apresentadora Hebe Camargo, na primeira fase da cinebiografia de 2019), desde muito cedo, a atriz circula por festivais internacionais: há nove anos, o seu primeiro longa, Mate-Me Por Favor (de Anita Rocha da Silveira) também foi projetado em Veneza e lhe rendeu um de seus primeiros prêmios como atriz, no Festival do Rio.
“Para mim, é uma honra e uma alegria imensa poder trabalhar com cinema, poder contar histórias reais, com filmes políticos, tendo algo a dizer e levando eles para o mundo. O Brasil tem muito a mostrar e ensinar para todos lá fora”, asseverou Valentina.
AINDA ESTOU AQUI
- Brasil/França, 2024. Dir.: Walter Salles. Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro, Marjorie Estiano, Valentina Herszage, Camila Márdila, Maeve Jinkings, Humberto Carrão, Dan Stulbach, Daniel Dantas.
- Estreia hoje, em João Pessoa e Campina Grande.
- Veja locais e horários no Em Cartaz, na página 12.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de novembro de 2024.