Uma caixa cênica de arestas metálicas de três metros de altura delimita o espaço físico, que é mínimo. Dentro dele, uma geladeira, uma mesa com algumas frutas dispostas sobre ela e uma pia com água corrente. Em cena, cercada por essa estrutura, está a atriz paraibana Ana Marinho. Ela se encontra só e em silêncio para apresentar Razões para ficar, peça que tem em seu texto relatos reais de oito mulheres egressas do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, e que acabaram de ser transferidas para o Serviço Residencial Terapêutico da cidade de João Pessoa. É com sutilezas que se desvela o drama das mulheres confinadas e abandonadas em seus conflitos psíquicos e existenciais.
A peça volta a entrar em cartaz por uma curta temporada hoje e amanhã, sempre às 20h, e domingo, às 19h, no Teatro Lima Penante, em João Pessoa, com entrada gratuita. A montagem estreou em 2016 e desde 2018 não era encenada. A razão para voltar agora tem a ver com a urgência que o tema ganhou durante a quarentena forçada pela Covid-19. “Acredito que a recepção vai ser diferente. Para mim, vai ser diferente fazer porque a experiência de isolamento acabou por atingir pessoas consideradas sãs. Principalmente as mulheres que vivem isoladas dentro de casa e que com a pandemia viveram processos de violência em casa. Como estou mais velha, a solidão também se aproxima muito nessa fase da vida”, conta Ana Marinho, hoje com 56 anos.
A narrativa dramática, que conta ainda com os poemas de Adélia Prado e Lisbeth Lima e trechos de cartas de Clarice Lispector, surgiu a partir da tese da professora Thalyta Lima, que trazia originalmente os relatos das oito mulheres. A pesquisa foi realizada quando era dado início a política de implantação de tratamento extra-hospitalares aos ex-internos de manicômios. A encenação busca evidenciar os limites frágeis entre saúde e doença e as relações com a sociedade e o Estado. “Juntar essas vozes foi uma experiência incrível. Percebi que mesmo com as diferenças entre essas mulheres, elas têm experiências muito parecidas, como o abandono familiar”, conta Marinho, que é responsável pela encenação e tem dramaturgia de João Paulo Soares.
Como o espetáculo é intimista e ocorre em um espaço cenográfico bem reduzido criado por Maria Botelho, a luz de Fabiano Diniz converte-se em um personagem da montagem. Tudo se amplifica na representação de Ana Marinho, que não recorre a histerias ou pantomimas para representar o adoecimento mental em seu corpo. “Isso veio de uma memória pessoal minha e é também de permanecer muito tempo em silêncio durante os ensaios e em uma solidão muito grande. De tentar falar e não conseguir. A contenção pode ser algo mais forte e intenso”, revela a atriz, que chega, em Razões para ficar, ao seu terceiro monólogo na carreira. Ela é professora de Literatura na UFPB e dedicou-se ao grupo OsFodiário, antes de a maioria de seus integrantes seguir por oportunidades no audiovisual além das divisas paraibanas.
Em Razões para ficar, Ana Marinho aproxima as histórias das mulheres vivendo em regime de internação e fragilidade psíquica ao cotidiano de tantas outras mulheres. Um ponto de interseção que aproxima essas duas realidades é o desejo comum compartilhado por todas. “O que elas querem são coisas aparentemente muito simples: comer, ter amores e amizades, casar, ter uma casa e ter filhos. A maior alegria delas, contudo, é estarem em um quarto só para elas e poder ir à sala. Elas também gostavam de poder comer e dormir no horário que queriam. Essa autonomia de abrir a geladeira e comer o que quiser parece pouco, mas é muito. São coisas essenciais”, finaliza Ana Marinho.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 7 de julho de 2023.