Há algumas semanas, a escritora Ana Lia Almeida, pernambucana radicada na Paraíba, desbravou a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) para o lançamento de seu primeiro romance — Praieira, editado pela Patuá. A personagem principal desse seu livro, a garota Nice, também explora uma nova realidade, que será crucial para sua formação como agente social e como ser humano. Porém, enquanto Ana teve, naquela ocasião, a companhia e o apoio de outros literatos do estado, a criança da ficção enfrenta a oposição da própria mãe nesse processo. A obra ganha uma tarde de autógrafos hoje, a partir das 17h30, na Caravela Cultural, situada no Centro de João Pessoa. O evento, com entrada franca, contará com a participação da também autora Clarissa Moura.
Nice, com 12 anos, leva uma vida monótona em seu trajeto diário sem sobressaltos —do condomínio, onde mora, para a escola e vice-versa. As coisas começam a mudar graças à chegada da doméstica Sandra em sua casa. Com a convivência, a pequena aproxima-se dela e começa a frequentar o seu ambiente — a ocupação que dá nome ao livro, situada em uma região litorânea da cidade.
- Romance mostra uma menina de classe média conhecendo a vida de sua empregada | Foto: Divulgação/Patuá
As coisas complicam-se quando, nessa visita, a polícia chega para despejar os moradores da comunidade. Marta fica sabendo do imbróglio ao ver a filha Nice dar “tchauzinho” para a equipe de televisão que cobre a reocupação. A mãe parte para o resgate da filha, sem saber se esta quer ser “salva” daquela situação — ou se ela quer afastar-se de Sandra.
Ainda que Praieira tenha, a princípio, ares de romance de formação, o foco do livro, segundo Ana Lia, repousa nas causas sociais abordadas por ela, a partir de uma temática urgente. Ainda assim, a transformação de Nice, da infância para a adolescência, também tem parte importante na construção da trama — que levou cinco anos para ser escrita, da concepção à publicação.
“As coisas que inventamos tem total relação com o que vivemos, mas Nice não corresponde à menina que eu fui, tampouco à menina que a minha filha é. Certamente, eu resgatei em meus diários o universo de questões relacionadas a esse momento. Essa experiência acaba não sendo universal, dependendo de aspectos como condição econômica, gênero, raça, lugar em que se vive, etc”, pondera.
A ambientação praiana tem uma função específica para a autora — conforme Ana Lia, a hostilidade contra comunidades similares em regiões litorâneas é muito maior do que em áreas periféricas, por estarem no “caminho” das elites. O nome da ocupação no livro também faz referência à Insurreição Praieira, revolta popular da segunda metade do século 19, em Pernambuco.
“Desde muito jovem, acompanho despejos ligados aos movimentos do campo e da cidade e eu queria, sim, trazer um pouco dessa realidade para um livro que não fosse na linguagem ‘jurídica’, mas pelo olhar de uma garotinha que está conhecendo um novo mundo. A literatura é tão rica e tão subjetiva, que leva a gente para lugares que outras linguagens jamais poderão levar “, aponta.
Neste livro, ela contou com a mentoria da colega Débora Ferraz. Os acertos na elaboração dos rascunhos foram paulatinos e ganharam comentários de outros amigos, como o editor Eduardo Sabino. Mas comparando esse processo sinuoso com as diversas acepções de seu texto em prosa, Ana Lia manifesta que o conto segue sendo o gênero mais labiríntico com que teve contato.
“Requer uma capacidade de síntese difícil de equacionar, para prender o leitor numa história com um desfecho pulsante. Já a crônica me sai de modo mais espontâneo. E não acho que se deve ao fato de ser um gênero mais simples, o que não é, mas a uma aptidão pessoal, mesmo, porque, talvez, eu tenha aprendido a escrever no gênero crônica sem ter consciência disso”, alega.
Torcendo
Ana Lia é integrante do coletivo Mulherio das Letras e do Clube do Conto da Paraíba — por meio deste, participou de coletâneas com outros escritores. Antes de Praieira, escreveu dois livros solo: Curtinhas da Quarentena (2021), com crônicas, motivadas pelo isolamento da pandemia; e Travessia (2022), novela sobre maternidade. Mas o exercício das letras começou na infância.
“Eu invento histórias no papel desde que aprendi a escrever: tenho memórias de criança escrevendo pequenos contos de madrugada no meu quarto (alguns dos quais eu tenho até hoje e já contam mais de três décadas), também crônicas e rascunhos de poemas, pequenas mentiras sobre coisas que não haviam acontecido durante o dia nos meus diários enfeitados”, rememora.
O apoio do pai (o autor e psicanalista Ronaldo Monte, que morreu em 2018) foi crucial para a formação da leitora e da literata nos anos seguintes. Quando de seu ingresso na faculdade e, em seguida na carreira acadêmica, teve ciência de que poderia — e deveria — dar mais atenção à sua produção textual. A quarentena, a partir de 2020, tornou-se fonte de inspiração nessa seara.
“Eu pegava um aspecto daquela loucura toda, dava um toque de humor e distribuía para a família e para os amigos. A coisa foi crescendo, as pessoas foram gostando até que um amigo querido e respeitado jornalista, Rubens Nóbrega, pediu para divulgar no blog dele. O alcance foi aumentando de modo que começaram a me pedir um livro com aqueles relatos”, detalha.
Comentando sua ida à Flip, Ana Lia assevera que o evento ainda dá prioridade a editoras e escritores do eixo Rio-São Paulo, mas a “caravana paraibana” de 2025 (a maior da história do evento, conforme a impressão dos literatos) foi muito bem recebida pelo público: Braulio Tavares, Bruno Ribeiro, Maria Valéria Rezende, Porcina Furtado e Tiago Germano estiveram na comitiva.
“Alguns desses escritores não são paraibanos de nascimento, como eu (que só fiz nascer no Recife, toda vida morei aqui), mas todos se fizeram escritores em nossa terra. Posso afirmar que por onde a gente passava debatendo literatura, lançando livros, promovendo oficinas, chamávamos atenção e era muito comum ouvir comentários positivos sobre a qualidade literária do estado”, assinala.
Outro desafio desenha-se a nível local — a conquista de espaço no mercado editorial paraibano, ainda dominado por homens, como em outros segmentos de produção, mas menos hostil do que em outras cidades e estados, de acordo com Ana Lia. O Mulherio das Letras, ela destaca, é um movimento nacional importante na busca por essa equidade entre os gêneros.
“Na Paraíba, temos mais possibilidades de redes criativas até mesmo com artistas de outras áreas como a música, as artes plásticas, o teatro. Mas precisamos de uma política mais consistente de formação de leitores, de estímulo às editoras, de produção de espaços em que a literatura consiga circular… Tudo isso é mais difícil para as mulheres, mas precário de um modo geral”, lamenta.
Ana Lia assinala que esta foi sua empreitada literária mais complexa até então, demandando “um grande esforço intelectual” para orquestrar uma narrativa longa, com atenção para a sua coerência e uma construção verossímil do perfil dos personagens. A certeza do êxito deu-se quando em determinado momento da escrita passou a torcer por Nice, Marta e Sandra em meio às suas agruras.
Como garotinha que foi, experienciando a literatura noite adentro, a autora conclui a entrevista aconselhando outras Nices — e outras Anas Lias — em suas investigações sobre o mundo: “Eu diria para nunca se deixar acorrentar pelas amarras que o mundo apresenta”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de agosto de 2025.