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Fazer o “desenho do som” engloba todos os “barulhos” que se ouve nas produções audiovisuais, nas telonas e nas telinhas

Músicos paraibanos entram no mercado de sound design

publicado: 30/12/2021 08h58, última modificação: 03/01/2022 11h04
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Henrique Andrade

por Gi Ismael*

“Por cima da cortina do chuveiro, podemos ver a porta do banheiro, entreaberta. Por um momento, nós observamos Mary enquanto ela toma banho e se ensaboa (...) e nós vemos a sombra de uma mulher surgindo por trás da cortina. Mary está de costas para ela. Mary se vira em resposta ao som e à sensação da cortina sendo puxada. Um olhar de puro horror irrompe seu rosto. Um gemido baixo e terrível começa a surgir em sua garganta. Uma mão segura uma enorme faca. A lâmina atinge praticamente toda a tela com um prateado que nos cega”. Este trecho é uma tradução livre do roteiro de Psicose (1960) e uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema: o assassinato de Mary no banheiro do Bates Motel. Se não fossem os aterrorizantes gritos abafados, o agudo barulho da água caindo do chuveiro ao chão, o balançar da faca e a enfática música de acordes dissonantes, a cena causaria o mesmo impacto que causa no público?

O conjunto de todos os sons que ouvimos nas produções audiovisuais nas telonas e nas telinhas, dos mais perceptíveis (como trilha sonora) aos mais discretos (como os sons ambientes), é chamado de sound design ou “desenho de som”. “Através de algumas ferramentas e técnicas, criamos todo o espectro de sons que a cena necessita, como por exemplo o barulho de uma porta abrindo, explosões, passos, pneus de carros e por aí vai. Isso tudo aliado à trilha sonora, que é a parte musical, evidentemente”, explicou Leo Noronha, produtor musical paraibano e compositor de trilhas sonoras para filmes e jogos de videogame.

Leo trabalha com música profissionalmente desde os anos de 1990, quando montou um estúdio em parceria com dois amigos. “Por conta do meu pai (o diretor Linduarte Noronha), em casa sempre respirei o universo do cinema. Algum tempo depois veio a paixão pela música e logo passei a unir as duas coisas. Nessa época, havia muita demanda de jingles e trilhas publicitárias. Passei muitos anos trabalhando para esse mercado. Mas entre uma campanha e outra, apareciam projetos para cinema”, contou, citando alguns trabalhos que assinou, como o documentário Péricles Leal - O Criador Esquecido, de João de Lima e Manuel Clemente, e parcerias com Manfredo Caldas.

Depois de amanhã, estreia na plataforma Globoplay a série animada Oreo Faz de Contos, que tem trilha sonora e desenho de som assinados por Leo Noronha. Paralelamente, Noronha trabalha na série animada Wardogs, desenvolvida pela Eleven Dragons e Red Nose, com estreia prevista também para 2022. “Acho que todo trabalho, seja ele de pequena ou grande produção, tem o seu aspecto desafiador. Às vezes o desafio está em se criar algo em pouco tempo. O deadline, na maioria das vezes, é bem curto. Atualmente tenho trabalhado, junto a uma produtora de São Paulo e uma grande marca esportiva, em uma série de animação que será lançada em breve em streaming. Tem sido um trabalho bem complexo, mas muito gratificante”, comentou.

O processo sonoro de uma produção audiovisual pode contar também com foley, uma etapa de criação de som de tudo aquilo que interage na cena e sincronização, ao vivo, com vídeo. Pode parecer redundante, mas muitos projetos demandam essa separação de ofícios. Henrique Andrade, músico paraibano, reside no Canadá, onde atua profissionalmente como editor de som. “Hoje em dia, uma grande parte do áudio dos filmes tem que ser recriada com foley. Existem vários motivos para que isso aconteça, mas geralmente isso ocorre pois o áudio gravado na locação não possui uma qualidade aceitável para ser usado no produto final”, explicou. “Esses áudios podem ser o som de um minúsculo galho de árvore quebrando ou até uma cena de perseguição com vidros quebrando, metal rangendo, água etc.”.

“Muita gente não faz ideia do quanto que o filme depende de nosso trabalho. Cerca de 90% do que se ouve no cinema foi gravado dentro de um estúdio, tanto o sound design/foley quanto as vozes dos próprios atores – nesse caso, o processo se chama gravação de ADR (Automated Dialog Replacement)”, disse Henrique. “Outra coisa que as pessoas não fazem ideia é de quais áudios são usados para representar certas coisas no cinema, como por exemplo o som da nave TIE Fighter em Star Wars. A galera acha o máximo quando eu falo que aquele efeito sonoro tem um grito de elefante como camada principal. Ou a famosa cena do bullet-time em The Matrix (1999), onde eles usaram sons de turbinas de jatos para criar o movimento das balas”, contou.

Com os trabalhos citados por Leo e Henrique, dá para se ter uma noção do quanto há mercado na área e o quão diversa pode ser a função. “Fiz alguns curtas que foram de arrancar os cabelos, mas o projeto que me deu mais trabalho até hoje foi um curta metragem-chamado Darkside, ficção científica com cenas de ação e outros efeitos sonoros que eu não tinha experiência nenhuma naquele período. Todo projeto tem seus desafios, na maioria das vezes sempre existe uma ideia inovadora que me leva a explorar novas técnicas e, consequentemente, a aprender mais e mais sobre o processo de sonorização de produtos audiovisuais”, disse Henrique. “Um dos projetos que eu mais me diverti fazendo foi a demo de jogo para a Slip Studio em São Paulo, baseada em uma animação chamada O Menino e o Mundo (2013). Fui convidado por um dos professores da LaSalle College para criar todo o sound design e músicas do jogo. Fiquei encantado vendo todos os sons criados por mim funcionando em game onde tanta gente profissional também fazia parte. Foi a primeira vez onde eu senti que eu realmente tinha encontrado o que eu queria ser”.

Esta específica carreira de Henrique começou quando, após se formar em Engenharia Mecânica na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), recebeu a chance de morar no exterior e estudar algo novo. “Queria aprender sobre algo que eu gostasse, uma área mais artística, mas que ainda fosse técnica. Fiz um curso chamado Professional Recording Arts, no LaSalle (em Vancouver) e a minha ideia principal era trabalhar com música, gravar e mixar meus próprios projetos e, consequentemente, me profissionalizar nisso. Mas durante o curso, descobri o sound design/foley e me apaixonei”, contou. Fazendo muitos trabalhos de graça, o sound designer conta que o começo foi duro, mas, eventualmente, criou um bom portfólio que possibilitou trabalhos maiores – e remunerados. Em 2019, trabalhou em tempo integral em seu estúdio e hoje faz parte da equipe do Keith White Audio, estúdio de pós-produção, além de continuar como freelancer como sound designer, editor e compositor de jogos e vídeo.

Henrique Andrade fez trilha sonora e desenho de som para jogo baseado na premiada animação ‘O Menino e o Mundo’

Aspirações? O céu é o limite

Quando o trabalho envolve infinitas combinações de notas musicais e ainda a imensurável possibilidade de gravar sons da natureza, há muito o que ser explorado no ramo. Quando perguntado sobre qual trabalho mais almeja neste momento, Leo Noronha tinha a resposta na ponta da língua. “Quero trabalhar cada vez mais com longas e, aos poucos, entrar no mercado estrangeiro. A indústria de games também é algo que tenho grande paixão. Acho que uma coisa leva a outra e o céu é o limite”.

“Eu não sou um cara que tende a ficar pensando no futuro, eu deixo a vida me levar e vou tentando entrar nas portas que se abrem para mim”, disse Henrique, quando perguntado a mesma coisa. “Mas se eu pudesse escolher”, continuou, “eu queria poder trabalhar em projetos que envolvessem conservação ambiental, com cenas onde eu pudesse criar sons que não existem, como no documentário da Netflix chamado Blue Planet, onde os sound designers tiveram que criar efeitos sonoros para uma cena onde milhares de caranguejos andavam no fundo do mar. Basicamente o que me atrai para um trabalho é a possibilidade de criar e aprender coisas novas”, finalizou.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 30 de dezembro de 2021