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Naufrágios existenciais

publicado: 14/04/2023 14h00, última modificação: 14/04/2023 14h00
Depois de quatro anos rodando o país e colecionando prêmios, grupo Ser Tão Teatro apresenta ‘Alegria de Náufrago’, hoje e amanhã, em João Pessoa.
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Rafa Guedes, Thardelly Lima e Cely Farias (esq., centro e dir., respectivamente) interpretam todos os personagens tragicômicos da peça inspirada no conto produzido no século 19 do russo Anton Tchekhov (1860-1904) - Foto: Eunilo Rocha/Divulgação
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Foto: Eunilo Rocha
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Foto: Marina Cavalcante/Divulgação
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Foto: Eunilo Rocha/Divulgação
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por Joel Cavalcanti*

O espetáculo surgiu em um momento de crise para o grupo Ser Tão Teatro. Grande parte das incertezas que atravessaram a carreira de seus integrantes são retiradas de uma caixa no centro do palco para serem incorporadas ao texto inspirado no conto do russo Anton Tchekhov, Uma história enfadonha, escrito em 1888. Alegria de Náufrago conta a história de desilusão do professor emérito Nicolai Stiepánovitch, um homem que seguiu todos os preceitos de uma vida feliz e realizada profissionalmente, mas que se mostra patética diante da sociedade e suas instituições. “A gente usa esse lugar para também trazer as próprias cicatrizes, inseguranças, dúvidas e quedas dos atores em cena. Tudo isso com muito humor, que é um traço do nosso trabalho”, afirma o ator paraibano Rafa Guedes.

Com duas apresentações que ocorrem hoje e amanhã, no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa, Alegria de Náufrago volta ao estado depois de quatro anos rodando o país e colecionando prêmios, como o de Melhor Texto no Prêmio Prio de Humor 2022, no Rio de Janeiro. Com sessões sempre às 20h, o espetáculo tem duração de 60 minutos e classificação indicativa de 12 anos. Ingressos estão à venda por R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia), podendo ser adquiridos no Sympla (www.sympla.com.br) e nas lojas Furtacor (Mag Shopping e Shopping Sul). O texto é assinado pelo coletivo e por César Ferrario e Giordano Castro, com os dois últimos dividindo também a direção.

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Foto: Eunilo Rocha

Em cena, Rafa Guedes está ao lado de Thardelly Lima e Cely Farias. Os três interpretam todos os personagens da peça, em um ritmo muito ágil de atuação bastante entrosada, intercalando os papéis com pequenas mudanças na caracterização dos figurinos. Os desígnios e infortúnios do professor em falência interior são colocados em paralelo com as situações de trabalho dos atores, a exemplo de contratantes que não pagam, a corrida pelos editais, elenco que não ensaia e só pensa na remuneração, e ainda outros que precisam animar festas e fazer campanhas políticas e novelas para complementar a renda. Um tipo de registro tragicômico que não está na superfície do texto de Tchekhov, como assume Guedes: “Se for falar de forma padrão, o conto é um drama. Mas a gente tem esse olhar que acredita no humor ácido e na ironia. Para nos provocarmos, vamos enfatizando isso, que é o nosso toque, a marca do grupo”.

Depois de seguir modelos genéricos de felicidade, o personagem do professor Nicolai não consegue mais, aos 62 anos, reconhecer a si mesmo e nem a mulher ou a filha que estão ao seu lado. Um náufrago em sua própria existência. “Ele não tem a doçura, não tem a cor e nem a temperatura do amor. Mas tem uma outra personagem chamada Cátia, afilhada do Nicolai, que vai no sentido oposto ao dele. Ela é a artista no Brasil, a sonhadora que se joga para viver da arte. E também quebra a cara. É quando se levantam todas essas questões de trabalho dos atores e atrizes”, remonta Guedes.

É através dessa estrutura narrativa que são inseridas as elucubrações pessoais do elenco, como quando Thardelly Lima conta sua história de vida profissional, como quando poderia estar circulando com o seu ofício, mas não tinha dinheiro para uma passagem de ônibus. Ou quando uma atriz teve sua participação numa animação de festa cancelada porque a criança aniversariante chorava dizendo que a princesa não poderia ter cabelos cacheados.

No palco do Teatro Paulo Pontes, todos estão vestidos de pijamas como se fossem parte das crises de consciência de um insone professor Nicolai. Todas as suas aflições e delírios saem de uma mesma caixa onde estão todos os elementos cênicos e cenários que ajudam a contar a história do profissional acadêmico, mas também o do próprio grupo de teatro paraibano. “Toda a história que a gente conta, sai de dentro daquele case. Começamos o espetáculo sentados em cima do case que tem várias gavetas. Nossa história toda sai dali”, diz Rafa Guedes.

Depois de vários anos levando toneladas de equipamentos do espetáculo de rua Flor de Macambira, o Ser Tão Teatro estreou a turnê de Alegria de Náufrago em 2017. Mas a melhor apresentação do grupo, segundo seus integrantes, foi no ano de 2019, no Teatro Santa Roza, a última vez que eles estiveram com a peça na Paraíba.

O coletivo Ser Tão Teatro surgiu há 15 anos na cidade de João Pessoa, dentro da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Desvinculou-se da instituição e vem se destacando com uma produção de sucesso, através de uma pesquisa que prima pelo trabalho do ator e da atriz em sistemas de colaboração com outros artistas e coletivos teatrais brasileiros. A pesquisa do grupo teve foco inicialmente na dramaturgia brasileira da década de 1960, através de textos de Ariano Suassuna, Jorge Andrade e Joaquim Cardozo. Posteriormente, o grupo sentiu a necessidade de estudar autores da dramaturgia mundial, sempre inserindo a voz do ator/atriz no centro da encenação, e se valendo de características já marcantes do coletivo, como o humor e a acidez.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de abril de 2023.