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Ney Matogrosso bota o bloco na rua

publicado: 24/08/2023 09h31, última modificação: 24/08/2023 09h31
Em entrevista exclusiva, o artista falou sobre o repertório do show em João Pessoa e a relação com a Paraíba
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Ney apresenta hoje, no Teatro Pedra do Reino, às 21h, o show ‘Bloco na Rua’, que passou por transformações desde a turnê de 2019 - Foto: Marcos Hermes

por Joel Cavalcanti*

Quando Ney Matogrosso veio mais recentemente à Paraíba, em 2019, ele apresentou a turnê de ‘Bloco na Rua’, a mesma com a qual sobe hoje ao palco do Teatro Pedra do Reino, às 21h, em João Pessoa. De lá para cá, com uma pandemia, uma eleição e uma tentativa de golpe à democracia, o país mudou muito. O show que ele traz de volta a João Pessoa e a forma de percebê-lo também passou por transformações. “Decidi mudar o final do show porque eu achava que ele estava muito político e eu queria fazer uma coisa mais alegre e que tivesse um impacto mais emocional”, antecipa Ney Matogrosso em entrevista exclusiva ao Jornal A União. A apresentação do artista que tem em todos os aspectos de sua expressão uma bandeira política acontece também no sábado, no Spazzio, em Campina Grande, às 22h30.

Para dar a intensidade pretendida e deixar o público numa frequência eletrizante, Ney Matogrosso incluiu no bis canções como ‘Poema’, ‘Ex-amor’ e ‘Como 2 e 2’, para tudo se encerrar com ‘Homem com H’, um dos maiores sucessos de sua carreira, composto especialmente para ele pelo paraibano Antônio Barros, no início da década de 1970. De início reticente em cantar um xote sem ter o sangue nordestino, ele foi convencido pelo produtor musical Marco Mazzola e pelo cantor Gonzaguinha a interpretar a canção, uma vez que ninguém mais poderia dar o caráter dúbio e irreverente àquela letra. Gerar o inesperado na plateia está na gênese da verve artística transgressora de Ney Matogrosso que, mesmo antes de querer ser cantor, se encantou ao ver, em 1962, em Brasília, um baiano lhe causar um efeito que ele sonhou provocar nos outros.

Nem tenho pecados. Não acredito nisso, sabe? Eu vivi 50 anos além daquilo e hoje em dia eu acho que parece que estou falando de mim, da minha vida, dos acontecimentos da minha vida

“Na hora que eu vi o Caetano inteiro de cor de rosa, com cabelo no ombro, eu achei lindo e tomei um impacto porque aquilo era uma coisa absolutamente proibida ao homem. Nessa hora, me veio a ideia de que, se eu fosse um artista, eu queria ser uma coisa assim”. Foi exatamente isso que ele fez há exatos 50 anos, quando arrebatou o país com sua estreia como cantor de timbre andrógino no ‘Secos e Molhados’. Com sua figura de rosto coberto de maquiagem, que requebrava o corpo quase desnudo em formas que não podia distinguir bem se era de homem, bicho ou mulher, ele apresentou ao Brasil uma possibilidade de viver de forma libertária e insubmissa. O primeiro performer gay pop-star da América do Sul, em tempos de uma ditadura absoluta. Algo que pode ser lembrado desde a primeira música de ‘Bloco na Rua’.

Sucessos

Dessa época inicial, ele traz ‘Sangue Latino’ para o repertório do show de logo mais. Mas mesmo aí reside uma mudança, dessa vez de dentro para fora. Ney Matogrosso admite que agora, depois de meio século, passou a cantar a música de João Ricardo por uma perspectiva muito mais íntima. Teria sido a vontade de assumir os pecados? “Nem tenho pecados. Não acredito nisso, sabe? Eu vivi 50 anos além daquilo e hoje em dia eu acho que parece que estou falando de mim, da minha vida, dos acontecimentos da minha vida. É como se eu estivesse afirmando um pedaço de uma passagem da minha vida por aqui, pela Terra”, admite o cantor.

Boa parte da vida fonográfica de Ney estará sendo revisitada pelo público na Pedra do Reino através de clássicos como ‘A maçã’, ‘Pavão Mysteriozo’, e ‘Jardins da Babilônia’ e ‘Corista de rock’, de Rita Lee, que ele considerava uma ‘irmã gêmea’. ‘O beco’, do paraibano Herbert Vianna, compõe o setlist, que inclui ainda quatro músicas de Chico Buarque: ‘Yolanda’, ‘Postal de amor’, ‘Ponta do lápis’ e ‘Tua cantiga’. “Cada música é uma intenção e que corresponde aos meus pensamentos, porque eu seleciono música assim. Olho para uma música e penso: ‘se você fosse o compositor, você falaria isso?’ Para mim, como intérprete, isso é fundamental”, explica. Essa característica interpretativa sempre se sobrepôs na carreira de Ney, independentemente dos gêneros musicais, que podem flutuar entre a valsa e o funk, o samba e o fado, o rock e a bossa nova.

Laço afetivo com a Paraíba

Devido a essa versatilidade, Ney Matogrosso foi rejeitado no primeiro teste que fez como cantor para ter um emprego na televisão com uma música do paraibano Geraldo Vandré. Isso aconteceu ainda no tempo em que ele vivia como hippie e tentava se sustentar com a venda de peças de artesanato. “Eu não me lembro qual era a música, mas era uma daquelas bem conhecidas do Vandré. Era o que eu gostava de cantar na casa da Luhli. Mas os caras me disseram que eu tinha que cantar uma música do Chris Montez por causa da voz fina. Eu disse que não tinha nada a ver com o Chris Montez, o que eu canto é isso. Se quiser é isso, se não quiser… e aí já fui saindo”, lembra Ney. “Mas isso não foi ideia minha. Era ideia da Luhli, que me forçava a ir para a televisão para fazer teste. Mas eu não queria nada com a televisão. Tinha até um certo preconceito na época”.

É possível que as letras de forte teor político de Vandré tenham influenciado Ney Matogrosso em seu primeiro teste por causa de toda a repressão que ele sempre carregou em sua vida. “A polícia andava atrás de mim na rua toda hora me dando baculejo por causa da minha aparência. Toda hora me revistavam. Era uma barra pesada no Rio de Janeiro. Mas eu nunca tive medo deles, não”.

Hoje em dia, as relações pessoais de Ney Matogrosso com os paraibanos estão mais circunscritas a um núcleo que tem a cantora Renata Arruda e o cineasta Tavinho Teixeira. “Não tenho contato com Antônio Barros, mas toda vez que eu venho para cá ele aparece e eu gosto muito de me encontrar com ele. Meu laço com a Paraíba é mais afetivo que profissional”. Esse laço se estende ainda para envolver o multiartista André Morais, que acaba de lançar com Ney a música ‘Cantar e Sangrar’, composta pelo paraibano e a cuiabana Lucinda, da dupla com Luhli, a amiga que incentivou Ney desde o início.

Medo da morte

Foto: Roberto Guedes

Aos 81 anos, Ney Matogrosso já tem publicado um livro de memórias (Vira-Lata de Raça, 2018) e duas biografias (‘Ney Matogrosso: A biografia’, 2021 e ‘Um Cara Meio Estranho’, 1992). Existe ainda o musical ‘Ney Matogrosso - Homem com H’ e uma cinebiografia da Paris Filmes em pré-produção no momento. Um conjunto de obras que parecem destinadas a um artista com mais passado do que futuro. Uma percepção que não assusta o artista. “Tenho uma ideia de morte que todos deveríamos ter porque não temos como escapar dela. Encaro com muita naturalidade. Claro que cheguei a essa naturalidade quando, nos anos 80, todos os meus amigos foram levados de uma vez só e eu tive que conviver com aquilo tudo. Conviver e não pirar, porque precisavam que eu não pirasse. Tive muito tempo para refletir sobre esse assunto específico. Realmente não tenho medo, não”.

Essa é uma força que Ney Matogrosso absorve de sua conexão espiritual com a natureza. “Sei que uma hora dessas eu vou, mas todos nós vamos. Acho uma bobagem a gente ter medo da morte. Enquanto ela não chega a gente se diverte no mundo, faz tudo o que a gente gosta. A gente trata bem as pessoas. Vamos tratar bem uns aos outros. É tão simples. Não dói”. Enquanto isso, Ney Matogrosso vai continuar a brincar e a botar pra gemer com o seu ‘Bloco na Rua’.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 24 de agosto de 2023.